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  • Foto do escritorBatista de Lima

O cheio e o vazio

Batista de Lima

Há uma luta permanente entre nossos olhos e nossa mente. É um impacto entre objetividade e subjetividade. A mente cria, os olhos desvendam. Nossas fantasias gostam das sombras, mas quando nossos olhos, como dois faróis, aparecem, iluminando tudo, desnudam o que fantasiamos. Nunca o imaginado consegue sobreviver integralmente à luz da realização. Nossos sonhos não possuem limites, mas nossas realizações têm princípio e fim. Tudo o que criamos é finito, apenas o imaginado rompe as fronteiras do sem fim. Por isso tudo, pode-se dizer que dos nossos sentidos, são os olhos que menos realizam em nossas criações. Nossos olhos são desrealizadores.

Uma caixa de presente geralmente vem revestida de bonito papel brilhante. É uma provocante intimação aos olhos para o desvendamento do que a mente imagina. O recebedor vacila entre abrir logo, para vencer a sofreguidão da curiosidade, ou deixá-la fechada para aguçar cada vez mais a fantasia. Naquela caixa saltitam infinitas possibilidades. Ali dialogam seres que vão de um diamante a uma bomba, de um manjar dos deuses a um rato podre. Ali está uma prenda que pode ser até a imagem do presenteador. A imaginação mais viva, que ali repousa, possui suas raízes na alma de quem presenteou. Se vem de fulano, o presente que recebo, dá para imaginar o que a caixa retém.

O grande desastre ocorre ao ser aberta a caixa. É até possível que a festa de aniversário perca um pouco de sua graça por conta da abertura dos presentes. Daí aconselha-se abrir tudo após as libações do dia e os afagos de quem compareceu. E quanto mais os presentes permanecerem fechados, mais ricos vão se tornando para nossa mente criadora. O mesmo acontece com nossa caixa de sonhos. Enquanto não realizados, eles se reproduzem, mas ao realizá-los eles morrem. A realização é a morte do sonho. Por outro lado sua morte é um adubo para surgimento de novos sonhos. Quando um desejo é realizado há uma transferência para outros desejos que surgem. A plenitude é apenas possibilidade.

A plenitude pode se tornar uma estagnação. Afinal, a vida é uma permanente construção, é resultante de um insatisfazer que acompanha o ser. Assim é também a construção da casa. Enquanto habitada ela retém um querer mais de construir. Seus compartimentos, dos menores aos maiores, estão sempre precisando de reformas, mesmo estando repletos de completudes. Há sempre um vazio qualquer a ser preenchido. E se esse vazio está fechado, aos poucos vai se esvaziando de vazios. É como um cofre de que se perdeu a chave. Ele vai se enchendo à proporção que o tempo passa. Muitas preciosidades são postas no seu interior, tantas coisas ali estão, que não caberiam se estivesse aberto.

É por isso que se pode dizer que um continente fechado suporta mais conteúdos do que se aberto fosse. Um armário lacrado suporta um universo de possibilidades que se evaporam ao ser devassado pelo nosso olhar. Nosso olhar é um devastador de paisagens. Daí haver pessoas que se negam a ver o cheio para não esvaziá-lo. É como aquele casal que se viu quando jovem e que depois de muitos anos distante, se reencontra e a nova imagem devasta aquela antiga que vinha guardada. É como o caso daquela pessoa que evita ver um cadáver de alguém conhecido, para guardar a imagem anterior daquele corpo repleto de vida.

Nossos olhos, no entanto, são pescadores de paisagens. Eles trazem, para nossa mente ruminar, uma infinidade de imagens que são processadas pela mente e guardadas na memória. São os olhos que mais abastecem a memória. As imagens que captamos na infância são as mais antigas na nossa mente, mas são as mais fundamentais. Infância feliz é alicerce para uma vida que busca felicidade. No mundo adulto, pontificam, além de imagens felizes, muitas infelizes. Também são tantas essas imagens do cotidiano que não conseguimos salvá-las totalmente. É como se deslizássemos sobre signos que não podemos abraçar. Perdemos muitos detalhes por conta de grandes imagens e importantes aconteceres.

Nosso mundo está tão cheio de significados que não damos mais conta de decifrá-los. Mesmo estando entre quatro paredes, não notamos mais as pequenas coisas. O preenchimento de todos os espaços nos coloca em um vazio que só grandes catástrofes chamam nossa atenção. Esses espaços que nos fecham, também enclausuram nossos sonhos. Temos carência de imensidões. Há quase sempre uma parede à nossa frente. Nosso horizonte está a um palmo do nariz, e isso não é bom. Há uma necessidade de alargarmos nossos espaços para preenchê-los com nossos sonhos. Antigamente eram serras, estrelas e nuvens que ilimitavam nossos sonhos. Hoje são muros, telas e portas que nos esvaziam de imensidões.

Precisamos, finalmente, recuperar vazios para construirmos latifúndios mentais, em que nossos sonhos se munam de botas de sete léguas e replantem na terra devastada a amplidão de que necessitamos. A velocidade quanto maior mais ofusca a paisagem. Nossos vazios mentais se enchem muito mais na lentidão do que nesse disparar contínuo em que nos envolvemos. Daí que na dialética do cheio e do vazio, o povoamento da solidão tem se tornado uma transvisão do que acumulamos quando o mundo era nosso. Diante de tantos apelos que o cotidiano nos incute, precisamos de muito senso de escolha para não sermos tragados por um mundo repleto de apelos. Precisamos sempre de um retorno ao mundo da nossa infância, à infância do nosso mundo e de nossas coisas para transvermos nosso existir e ressuscitarmos epifanias, transfigurações e alumbramentos.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 19/05/15.


 

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