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  • Foto do escritorBatista de Lima

O chapéu e a tarrafa

Batista de Lima


Às vésperas de completar seus 90 anos, meu pai falou que gostaria de receber como presente, um chapéu e uma tarrafa. Sabendo que ele não pescava mais e que pouco saía ao sol, estranhei o pedido de aniversário. Por outro lado, não custava nada atender-lhe nessa data tão marcante. Afinal, não é comum se chegar aos noventa anos, com saúde e lucidez suficientes para se escolher até os presentes a receber. Apesar dos açudes continuarem piscosos e o sol cada vez mais quente, era de se supor que esse pedido tinha outra finalidade bem mais simbólica do que pescar curimatãs ou se proteger da canícula.

Lembro-me bem dos tempos em que ele, no auge da sua força, lanceava com tarrafas de dezoito palmos, mesmo estando com água ao pescoço. Era uma proeza que poucos conseguiam. Até porque não era apenas abrir aquela tarrafa enorme, era também alçá-la à superfície, carregada de peixes, de lodo e de sujeiras do fundo das águas. Mas tudo era aproveitado. Os peixes iam para a enfieira, antes de chegarem às panelas, e o lodo e as sujeiras levados para a margem como forma de limpar a água do açude. Será que a rede de hoje tem essa utilidade para ele? Qual o tipo de pescaria a ser feita agora aos 90 anos de vida?

Aos 90 anos, muitas redes já passaram numa vida. São invernos, são secas, são caminhos caminhados, idas e vindas, noites e dias, desenganos, mas, principalmente, sonhos, uns realizados, outros apenas sonhados. No entanto, chegar a essa idade é também um milagre. Viver esse tempo todo no mesmo local, na agressividade do sertão, enfrentando os perigos da vida, longe dos grandes centros, sem as assistências médicas da atualidade, sem as vacinas que salpicam a pele das crianças de hoje, até dos animais da atualidade, e estar vivo é um milagre.

Francisco Batista de Lima virou Chico de Osmundo, fumou desde os oito anos, estudou o suficiente para votar, levou coices, topadas, arranhões, ferroadas, cocorotes, quando criança. Teve sarampo, papeira, febres, tosses e dores e mais dores. Curtiu o couro da pele no fogareiro do sol e escapou. Olhou tanto para o nascente em busca de relâmpago ou de uma nesga de nuvem que indicasse chuva, que seus olhos, ao longo dos anos, cavaram uma baixa na serra.

De tangedor de boi a cassaco nas grandes secas, de caçador de bom tiro a pescador em açudes, de bom pai a bom marido, sua trajetória de vida é horizontal, linear e simples. Temente a Deus, e devoto de São Sebastião, sempre compareceu às conferências de São Vicente de Paulo, frequentou missas, novenas, renovações, desobrigas, terços de penitentes, visitas de cova, nascimentos e enterros, sentinelas e casamentos, procissões e comícios. Não precisou estudar em livros para saber de véspera a hora que a chuva vai chegar, para saber em dezembro como vai ser o inverno no ano que se aproxima.

Por tudo isso um chapéu bem grande ele deseja, não só para sua cabeça, mas para aconchegar todos os que lhe cercam: filhos, netos, genros, noras, bisnetos, amigos, irmãos, sobrinhos e cunhados. Seu chapéu precisa de uma dimensão muito maior que de um grande circo, de uma grande empanada, para que acomode aqueles que ele cativou ao longo de décadas e lhe devotam amizade irrestrita. Também precisa acomodar aqueles que passam pela estrada e pedem guarida e são bem recebidos. Precisa ser um chapéu feito arca onde também os animais de estimação se acomodem com satisfação. É um chapéu onde possa caber um eterno cachorro que em qualquer época, em qualquer geração sempre se chamou "javali". Mesmo com muitas vacas é preciso sempre que haja uma chamada "rouxinol". Entre os jumentos, sempre um tem que atender pelo nome de "macaúba". Com tantos animais de carga, tem que haver uma burra de sela chamada "juriti".

Nesse chapéu também cabem os rituais, como sentar-se sempre no mesmo local na testa da mesa, sempre de calça e camisa e fazer o "nome do pai" após as refeições. É preciso, nesse chapéu, um lugar especial, um mausoléu para a figura do sogro. Nunca um genro tanto estimou um sogro. É difícil uma história sua em que o sogro, José Cândido de Lima, homem de terras, açudes e engenho, não apareça como herói, santo e filósofo. Esse chapéu, no entanto, só funciona por completo, se vier acompanhado da tarrafa.

Essa tarrafa que ele tanto deseja é para pescar pessoas para perto de si. É para juntar as criaturas no seu chapéu arca, circo e coração. Aos noventa anos ele laça com a tarrafa da sua simpatia aqueles que lhe estão próximos, e conta histórias, e repete histórias tecidas com as linhas do coração. Ele não quer mais arrobas de algodão, cargas de rapadura, sacas de arroz, paiois de milho nem tubos de feijão. Quer apenas touceiras de afeto, chuvas de aplauso, por ser um vencedor, um general que venceu a batalha da vida e agora precisa desfrutar as glórias do sucesso, sentado na espreguiçadeira do alpendre, olhando com a casa, para o nascente e dando lições de vida aos circunstantes. Precisa contar para os que lhe cercam como se faz para se utilizarem tão bem as coisas e amar tão profundamente as pessoas, para enfrentar os perigos da vida e temer a Deus, para ficar casado com a mesma mulher, durante sessenta anos, ter com ela dez filhos. Ele precisa contar para todos como é possível depois de tudo isso ser tão feliz e querer começar tudo de novo, pescando de tarrafa a vida para ser colocada no chapéu onde nós todos estamos e estaremos para todo o sempre. Amém.


jbatista@unifor.br

12/07/11.

 

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