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O centenário de José Valdevino

Batista de Lima


O cabriolé puxado pelo cavalo Monarca, que o transportava até a igreja da cidadezinha, forma na sua memória um quadro impressionista jamais olvidado. O verde dos canaviais, os pendões esbranquiçados das canas que por muito tempo povoaram suas cãs, as serras circundantes, toda essa paisagem foi captada pelas suas retinas e gravadas de forma indelével na sua memória.

Não cuidamos devidamente de nossa memória. E quando o fazemos não somos criteriosos nas homenagens às personalidades que alicerçaram nossa cultura. Os mais significativos representantes de nosso magistério ficam quase que no ostracismo diante de gerações que se edificaram se abeberando de seus conhecimentos.

Refiro-me aqui, em especial, ao professor José Valdevino de Carvalho, cujo centenário de nascimento ocorreu exatamente nesse 25 de fevereiro. Nascido em 1911, na vila de Água Verde, município de Pacatuba, teve como pais, Pedro Lopes de Sá e Antônia Valdevino de Sá. Perdeu a mãe quando tinha apenas sete meses de idade, passando a ser criado pelos seus avós Juvenal de Carvalho e Dona Mariquinha, com quem passou até aos 14 anos.

Nessa idade sai da companhia de seus avós, lá do sítio Livramento, de Redenção, e vem para Fortaleza. Transcorre o ano de 1923, quando troca a vida do engenho pelo internato no Seminário Diocesano de Fortaleza. Após sete anos como seminarista, muda de local de estudos, ao se matricular no Colégio Cearense do Sagrado Coração.

Terminado o ensino médio naquele conceituado colégio dos irmãos maristas, ingressa na Faculdade de Direito do Ceará, onde colou grau em 1938. Entretanto, José Valdevino não ingressou nas lides advocatícias, preferindo dedicar-se ao magistério. Foi professor, registrado pelo MEC, da Escola Normal Pedro II, hoje Colégio Estadual Justiniano de Serpa, do Colégio Castelo Branco, do Colégio São José, do Colégio das Dorotéas e do Colégio Juvenal de Carvalho, cujo nome é uma homenagem ao avô que lhe criou e indicou os rumos da vida.

Não só o avô, mas também a convivência com a azáfama do engenho Livramento, com suas moagens demoradas, lhe adocicaram a vida, influenciando sobremaneira sua produção literária. José Valdivino de Carvalho tornou-se um poeta telúrico, marcado por um lirismo saudosista. Sua produção literária empreende, pelos caminhos da memória, um retorno ao paraíso perdido, de bagaceiras, canaviais, caldeiras, cambiteiros, caldeireiros e pela fornalha quente que forjou no jovem uma personalidade valorizadora da terra que o viu nascer.

Esse amor à terra da infância trazia à sua saudade aquelas imagens que compuseram o seu paraíso rural. O cabriolé puxado pelo cavalo Monarca, que o transportava até a igreja da cidadezinha, forma na sua memória um quadro impressionista jamais olvidado. O verde dos canaviais, os pendões esbranquiçados das canas que por muito tempo povoaram suas cãs, as serras circundantes, toda essa paisagem foi captada pelas suas retinas e gravadas de forma indelével na sua memória. A natureza, que maternalmente o viu nascer, teve nele um defensor de oitiva e um versejador que a enalteceu um toda a sua poética.

Sua produção literária privilegiou o poema mas também apresenta incursão pelo livro didático ligado à sua docência da Língua Portuguesa e do Francês. Na poesia foi como estreiou em livro com "Coração", de 1938; depois veio "O Perigo da Co-educação", 1939; "Ma Grammaire Française", 1940; "A Flor da Jurema", 1942; "A Poética do Padre Antônio Tomás", 1943; no mesmo ano, "Pontos de Português"; "Tardes sem Sol", em 1978, seu livro de maior repercussão literária; e por fim, "Historinhas para meus netos e bisnetos, de 1984. Como se observa, quase uma dezena de livros compõem a vasta bibliografia, sem contar a vasta produção de artigos e crônicas publicados nos jornais da terra.

Suas colaborações nos jornais "O Nordeste" e em "A Fortaleza", além da participação em revistas como "Valor" e na "Revista da Academia Cearense de Letras" proporcionaram-lhe ainda o enfeixamento de parte desse material em livros que publicou depois, como: "Você e a crase", de 1975; "Matriculei-me no ´Cearense´ (nótulas recordativas)", de 1979; e "O étimo de Valdevino", de 1980. Essa militância nas letras e no magistério, com desempenho exemplar, como professor de conceituados colégios de Fortaleza, chegando até à direção do Justiniano de Serpa, sem esquecer o ensaísta, o poeta, o cronista e o jornalista, que também o foi, levaram-no à glória de láureas que a sociedade agradecida lhe outorgou.

Foi por tudo isso que recebeu a Medalha Justiniano de Serpa, do governo do estado, a Medalha do Centenário da cidade de Redenção, além de lhe ser outorgado o título de cidadão da nossa pioneira cidade da abolição da escravatura brasileira. Pode-se acrescentar a tudo isso o fato de ter pertencido ao Instituto Cultural do Vale Caririense, à Academia Cearense da Língua Portuguesa e à Academia Cearense de Letras, onde ingressou no dia 15 de agosto de 1953. Nesse sodalício, ocupou a cadeira de número 11, cujo patrono é o Barão de Studart, vindo ocupar a vaga deixada pelo escritor Joaquim Alves. Na ocasião de sua posse, foi saudado pelo escritor Raimundo Girão, um dos mais festejados historiadores cearenses.

José Valdevino de Carvalho, como humanista que sempre foi, preocupava-se com a desumanização do homem diante da aridez da modernidade. Sempre quando possível saía em defesa da natureza, que juntamente com a fé, o amor e a saudade, formavam os polos de seu encantamento. Esse encantamento transparecia principalmente na sua poesia, que era um misto de inspiração e transpiração, pois trabalhava o texto preferencialmente em forma de soneto. Isso tudo dentro de um preciosismo linguístico que não admitia adminículos gramaticias. Na defesa da Língua Portuguesa esteve sempre como sentinela, a postos. Seus mestres da poesia eram: Castro Alves, Casemiro de Abreu e Fagundes Varela.

Essa admiração pelos grandes poetas de nossa pátria, ele fazia questão de patentear para as novas gerações. Sempre se apresentava solícito quando dele minha geração se aproximava para falar de poesia. E nos seus escritos, privilegiava os novos valores, os iniciantes, que precisavam de incentivo. Não esqueço que a primeira vez que vi meu nome estampado em jornal foi através de um comentário de José Valdivino sobre meus primeiros versos eivados de lirismo namorador e de ternura telúrica. Passei a admirá-lo e principalmente a ler seus poemas. Sempre o meu preferido, "Queixa".

"Sei de um lugar onde vivi feliz, / onde passei, contente, a infância toda. / Esse lugar é paraíso em festa. / Tem árvores, tem céus e tem montanhas.../ E eu era o filizardo nisso tudo. / Tinha nas mãos bucólicos luares... Na casa-grande, sempre calma e amiga, / Vivia o som da minha voz cantando.../ E o rio manso, e o canavial tão verde.../ E os frutos que dormiam pelo chão.../ E as tardes todas de ouro pelas serras.../ Por que não me deixaram como eu era?.../ Menino e ave, riso e madrugada, / Olhos cheios de azul e primavera!...".


jbatista@unifor.br

01/03/11.

 

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