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  • Foto do escritorBatista de Lima

O burrinho Sorriso

Batista de Lima




Era um burrinho tão magro que ninguém montava seu lombo para não ser espetado por seus ossos pontudos. Como possuía os quartos murchos, nunca serviu sua garupa para montaria. Já pertencera a tantos donos que sua história escorria de boca em boca. Não era pelas cargas que mal carregava, nem por selas que nunca portou. Sorriso era conhecido pelo riso que transmitia àqueles de quem gostava. Para quem não gostava, só tinha coices e mordidas. Era, no entanto, um encantamento vê-lo sorrindo para crianças e para quem lhe agradava com pasto.

Dizem por lá que fora artista de circo, brinquedo de criança, cambiteiro de palha de cana e capim, e quando uma sua dona, moça pimposa e casadoira, foi se casar na ermida, montada nele, entrou na igreja. Noutra ocasião lutou com um touro zebu que atacou uma mulher grávida na beira de um açude. Era um burrinho de bons modos que gostava de cantoria, acompanhava procissão e enterros, e em noites de sentinela também prestava plantão. Interessante era que jejuava na Semana Santa e que nas novenas de Santa Luzia ficava contrito e ajoelhado no terreiro da casa em reza.

Essas qualidades de Sorriso, que muitos outros nomes já tivera, andou despertando cobiça de muita gente esperta. Botaram dinheiro por compra, fizeram proposta de troca, mas seu último dono, também pobre, não quis saber de acordo. Entanto, na feira dos bichos, onde sua fama alastrou-se, um esperto endinheirado propôs fazer uma troca do burrinho por uma dúzia de carneiros capados. O dono mais uma vez se negou ao tal negócio. Mas uns malandros ali por perto, atingidos por ambição, três dias depois do episódio, foram sequestrar Sorriso do quintal do seu senhor. Eles queriam fazer a troca a que seu dono se negou.

Roubaram o burrinho à noite e puseram dentro de um carro, rumando em busca da venda. Não contavam os larápios que um carro de polícia averiguava na estrada quem levantasse suspeita. Parado o Chevete velho, com quatro malandros suspeitos, estava Sorriso lá dentro, feito Inês posta em sossego. Os ladrões e o burrinho, levados à chefatura, foram postos em celas lotadas de assassinos e traficantes. Depois de certas malícias que fizeram com Sorriso, foi preciso o Delegado levar a pobre vítima para dormir sossegado no sereno da calçada. Na manhã do outro dia, começou a chegar gente que queria ver o riso que Sorriso praticava.

Sorriso virou atrativo na Casa de Detenção pois todos queriam sorrir do sorriso de Sorriso. Trouxeram capim e alfafa, até água mineral sem gás, para a festa do burrinho nos seus dias de fartura. Mas como o que é bom pouco dura, começaram a aparecer donos, reclamando possuir posse dos destinos e do sorriso do artista da calçada. Apareceu fazendeiro, trazendo corda na mão, mostrando que o cheiro dela era o mesmo cheiro dele. A moça que montou Sorriso, no dia do seu casamento, trouxe papel salpicado de tantos carimbos dados, provando com provas cartoriais, ser o burrinho ali retido componente de seu plantel. O padre José Maria, aposentado de missas, veio trazendo relíquias dos tempos em que Sorriso servia de coroinha em missas que celebrara nos sítios das cercanias.

Eram tantos os donos do riso que Sorriso distribuía, do palanque da calçada, que o delegado também enfeitiçou-se da festa que o preso trouxera. Foi preciso mais três guardas, ordenando a multidão, além de dois escrivães, anotando depoimentos, para finalmente se saber quem herdaria Sorriso. Ainda teve uma romeira, carpideira de velórios, dizendo ser dona da prenda, do tempo que o bichinho chorava. Como prova do que disse, chegou perto de Sorriso e depois de alguns gemidos, tirou dele choro sentido. O Prefeito da cidade, com medo do aglomerado, que ali já se formava, botou guardas municipais para tentar dar jeito no tráfego que engarrafava na rua.

Na calçada de Sorriso, chegou locutor de rádio, e um canal televisivo já recolhia o sorriso que Sorriso exibia. Foi então que o delegado, mesmo gostando da mídia, que dali evoluía, resolveu dar por vencida a conquista do burrinho. Reuniu num pavilhão, ao lado de seu xadrez, cada dono que dizia ter a verdadeira posse do animal sorridente. Quinze homens ali se postavam, mais uma dama e um menor, todos devidamente munidos de razões e documentos, reclamando seus direitos sobre o artista da calçada. Sem chegar à solução, diante de tanta anarquia, o delegado conduziu o artista do sorriso ao recinto de seus donos para escolha do dono certo.

Soluções foram surgindo sem nenhuma sendo aprovada e o delegado prevendo ficar dono do burro. Como Sorriso só sorria para quem lhe tinha afeto, trouxeram-no para a sala para que ele próprio nomeasse o seu verdadeiro dono. Para surpresa de todos, ele soltou um belo sorriso para a dama ali presente, como sendo ela, somente ela, sua verdadeira dona. Dali ela saiu, puxando Sorriso pelo cabresto, deixando o resto daquela gente sem direito a seu Sorriso. Enquanto esvaziavam a sala, cada qual seguindo seu rumo, entra o senhor dono de circo, reclamando ao delegado que seu carneiro Chorão, que chorava feito criança, acabava de ser roubado e ele queria para o caso a devida solução.


FONTE: Diário do Nordeste - 25/04/2017.


 

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