top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

O Bruxo de Codó

Batista de Lima



Nicanor nasceu com a sina de transportar a dor. Ainda era criança quando levou o primeiro coice. A burra ´memória´ despejou os dois cascos traseiros contra suas frágeis costelas, fraturando quatro. Coronel Odilon teve que manter o garoto em hospital particular, na capital, para um mês depois recebê-lo penso para uma banda. Essa foi a primeira estação do seu calvário, porque logo na moagem seguinte, o burro ´bem-feito´ quebrou-lhe o que restava dos dentes que as cáries não tinham ainda comido. O certo é que de coice em coice ia perdendo os ossos e adquirindo cicatrizes. Foi então que o coronel seu pai, não tendo mais a quem apelar, procurou dona Luíza Anacleto, que já tinha certa fama de tirar má sorte. Tudo que era flor de muçambê foi usado em rezas e baforadas de cachimbo nas ventas de Nicanor sem que o azar fosse embora. Era rara uma semana em que o coitado não levasse um coice. Se um burro passava lá pelo fim do terreiro, parece que um ímã em Nicanor atraía o animal que o saudava com as patas traseiras. Era coisa do capiroto e Dona Luíza não teve forças para desenraizar o bruto do corpo do inocente adolescente. Foi aí que se lembrou, o coronel, de um bruxo que havia em Codó. Era tão famoso o mandingueiro, que, do São Francisco ao Amazonas, do Atlântico ao Pantanal, sua fama se enramara feito gitirana de pé de cerca. O coronel, então, despachou três vereadores da situação, com carta de muitas linhas de seu deputado protetor, que rumou para o Maranhão, para trazer para seus confins, o homem milagreiro. O dia da chegada foi de festa em Sipaúbas, com a banda de pífanos de mestre Viriato e foguetório de Mané Vieira. A camionete que o trouxe da Telha, onde o trem o despejara, parou em frente ao patamar da igreja onde as autoridades se postavam acompanhadas com os familiares, inclusive as três filhas do Coronel. Quando o homem desceu do automóvel, o foguetório abafou as palmas da multidão, os acordes dos pífanos e o repinique do sino da igreja. Desceu do carro um enorme mulato, aí pelos cinquenta anos, todo cheio de ouro dos dentes aos anéis em profusão. Era uma peça esculpida de músculos distribuídos em quase dois metros de picardia. A filha do meio, do anfitrião, teve um princípio de faniquito diante de tanta exuberância da natureza. O certo é que o visitante todo sestroso foi acomodado no melhor quarto da casa do coronel com direito a rede de varanda, penico de porcelana e queima de alfazema para tanger algum miasma daquele casarão vetusto. No dia seguinte o catimbozeiro começou por ouvir o encriquilhado Nicanor bem como os seus familiares em conversa de pé de ouvido, tendo demora maior quando depôs a irmã do meio, aquela do faniquito. No dia seguinte, foram todos para a casa do sítio pois era lá onde Nicanor mais tempo passava e mais coice levava. O curador pediu a Julieta, a filha do meio, já prestativa e habilidosa em lhe ajudar, que arranjasse muitos cordões, muitos mesmo. Conseguiram juntar quase quinhentos metros em novelos do tear. O homem dos milagres deu uma ponta a Nicanor e pediu que ele caminhasse de estrada a fora. O coitado da rapazola com caminhar de batráquio saiu desfilando sua desdita sempre com dois passos para a frente e um para trás. E se foi pela estrada até se acabar o fio. O mandingueiro de cima da calçada da casa grande se esgoelava ao perguntar se o aleijado lhe ouvia. Depois de muito gritar o rapaz respondeu, de lá, que estava ouvindo. Então veio a meizinha do raizeiro ao dizer com todos os bofes que dali em diante, cada vez que Nicanor visse um bicho coiceiro, ficasse nessa mesma distância do animal que nunca mais levaria coice. Foi aplaudido pelos presentes e depois levado para a mesa farta onde se refestelou de iguarias saborosas e olhares de Julieta. Nos dias seguintes, o mulatão foi ficando na casa grande do coronel, quebrando no dente os melhores quitutes, balançando-se no alpendre nas melhores redes e aqui e acolá um furtivo cafuné da moça do meio. Quinze dias já passados, quinze noites de misteriosos passos madrugadores pelos corredores, o Coronel despachou o visitante com pouca festa e menos regalias. Nove meses se passaram sem Nicanor levar coice, mas Julieta em estado interessante foi despachada para a capital nas caladas da escuridão para que a população da vila não visse o tamanho da sua barriga. Quanto ao bruxo, o Coronel convocou três dos seus melhores cabras e os mandou a Codó, com ordem expressa de só voltarem com os possuídos do mulatão milagreiro, acondicionados em álcool etílico para ele não ficar na dúvida da capação a macete.

 

04/11/2008.

 

7 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page