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  • Foto do escritorBatista de Lima

O berro candango de Nicolas

Batista de Lima




De posse de um mimeógrafo elétrico da marca Gestetner, de fabricação austríaca, Nicolas Behr invadia o Brasil. Estávamos em 1978 e os tempos não eram fáceis. Usávamos então os Correios. Éramos a Geração Mimeógrafo, a Literatura Marginal, a Xerox Generation e Os Alternativos. Reunindo tudo, éramos a mesma coisa. O guru dessa geração era esse candango do Planalto Central.

Cabelos longos e ideias muito mais, esse jovem poeta começou toda sua pregação poética pelas ruas de Brasília, mas não foi suficiente para sua inquietação. Como Brasília não lhe deu esquinas nem bodegas, ele inventou o "Iogurte com farinha", que nem tinha iogurte, nem farinha. Tinha palavras inquietas que se uniam em versos. Era seu livro de estreia, seguido de muitos outros, até nos chegar agora sua mais recente obra, "Brasílirica", já bem trabalhado visualmente, e ainda melhor apresentado na estrutura poética.

A apresentação é de Marcelino Freire que enfatiza que Nícolas, vindo de Cuiabá, "tomou as ruas, ganhou os bares e praças", espalhando seus versos mimeografados. Acentua ainda que esse candango pantaneiro não deixará pedra sobre pedra de Brasília, para depois reconstruí-la pela arte, ou seja, é preciso desconstruir o grande poema de concreto para em seu lugar reerguer a Brasilírica.

Sua poesia é decifradora da cidade. "Brasília nasceu de um gesto primário: / dois eixos se cruzando, / ou seja, o próprio sinal da cruz / como quem pede bênção/ ou perdão". Nessa sua decifração, chega a concluir que a superquadra é a solidão dividida em blocos. Conclui afirmando, liricamente, que todos os erros de Brasília são seus. Afinal vive a procurar a cidade nela própria. Daí que parafraseando Castro Alves ele verbera: "Brasília, Brasília, / onde estás / que não respondes?! Em que bloco, / em que superquadra / tu te escondes?!" É a cidade sendo procurada pelo poeta mesmo ele estando nela. É como se Brasília ainda não tivesse sido inaugurada nele.

Brasília é um grande poema gerado durante o Concretismo brasileiro. Seu projeto, depois de posto em prática, fez brotar uma cidade sem alma. Tornou-se um poema de cimento armado, sem o sopro do lirismo, sem memória, pois não havia o hálito dos fantasmas, pairando nas ruas, como consta das cidades antigas. O tempo passou a existir apenas depois da construção total da área que veio a ser invadida pela imaginação. Por isso que a certa altura o poeta declara: "melhor do que viver / é viver em Brasília". Há uma imensidão sobre a cidade o que faz do céu, o mar sem sal do poeta.

Essa imensidão é um viveiro de sonhos que leva o morador a acordar Lúcio Costa se porventura tocar um pilotis ali posto. Quanto a JK, ele "voltará glorioso, coberto de asfalto, / poeira e lama, vestindo o manto / de plumas dos tupinambás". Juscelino não ficará satisfeito com essa revisita, afinal, "após a inauguração, / começou a ser demolida" a sua cidade sonhada. Entretanto, sobre os escombros da urbe, o poeta gesta seu poema e JK, feito Dom Sebastião, vai fundar na segunda cidade, a terceira república.

A destruição da polis, de forma simbólica, não deixará carimbo sobre carimbo e a nova cidade dará moradia, inclusive para pessoas normais. Entre elas, os antigos candangos que se acostumaram a medir o tempo, "observando as rachaduras / nos pilotis dos blocos". Eles aprenderam a pegar na vida sem luvas. Verificaram que ali os gramados sonham, e que as superquadras perderam os ossos nos poucos abraços que seus braços ensaiaram. Sentiram-se esquecidos pela cidade que edificaram, como pais cujos filhos lhes abandonaram. Brasília é construída por palavras que fecham as portas para quem as pronuncia.

Hoje a cidade é habitada por mais gente fora que dentro dela. Os candangos construíram-na e ficaram ao largo apenas observando-a. Brasília é um corpo cujos olhos ficam fora na observância do locus em que deveriam estar. Por isso que as superquadras vivem à procura de uma cidade. Daí que o poeta não se conforma e brada: "por onde vaga / a alma de Brasília? / procurando uma vaga / para estacionar a alma". É por isso que, de longe, o cerrado cerra os olhos para não ver tanta desumanidade em que o homem se aninha. E Nícolas não perde a vez para denunciar: "uma casca grossa / envolve meu coração".

Com tudo isso, Nikolaus Von Behr, nascido em Cuiabá, em 1958, e morando em Brasília desde 1974, adora essa cidade que o acolheu. Nela vasculhou artérias e veias como se circulasse em um corpo vivo mas não tão humano. Alimentou a cidade com versos digeríveis e indigestos, às vezes, a ponto de, em 1978, ser preso e processado por porte ilegal de versos. É uma prova de que seus versos incomodam, como também incomodam suas campanhas em defesa da ecologia. Mesmo assim, já ganhou prêmios, já foi estudado em dissertações de mestrado e continua irrequieto, não esquecendo de cantar a cidade que o adotou, neste "Brasilírica". O leitor não pode também deixar de ler "Água em pó" e "Chega de poesia", entre outros. Afinal em Nicolas Behr, nada se perde, tudo nos encanta.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 03/10/2017.


 

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