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O barroquismo alcideano (Final)

Batista de Lima



A vida de Alcides Pinto seguiu muito de perto aquela norma de que "eu sou eu e minhas contradições". Operou seu texto, oscilando entre o concretismo e o surrealismo com a mesma desenvoltura. Conquistou invejável situação acadêmica ao chegar a professor de Comunicação, da Universidade Federal do Ceará, mas abandona a promissora carreira para se dedicar exclusivamente ao projeto poético que desenvolveu pelo resto da vida Pouquíssimos são os estudiosos da obra de Alcides Pinto que detectaram algum barroquismo na sua produção literária. André Seffrin está entre esses raros críticos, mesmo assim, classificando-o como um "barroquismo à Jorge de Lima". Para adentrar essa seara faz-se necessário partir para algo não aceitável por parte dos analistas estruturalistas, que é estabelecer uma ponte entre vida e obra do autor. É preciso se partir de um princípio de que Alcides Pinto era um personagem de si próprio. Seu modelo de vida pessoal entrava nos personagens de seus livros ou deles saía numa via de mão dupla. De alguma forma não se sabe, às vezes, quem é o personagem, quem está escrevendo, ou está se escrevendo, narrando ou sendo narrado. É nessa direção que Nelly Novaes Coelho chega a verificar que "desde o início, José Alcides manifesta claramente o impulso que o leva a criar: o desejo de viver a poesia... em lugar de simplesmente escrevê-la. Isto é, viver a criação poética, sem que nada pudesse se interpor entre Escrita e Vida". A vida de Alcides Pinto seguiu muito de perto aquela norma de que "eu sou eu e minhas contradições". Operou seu texto, oscilando entre o concretismo e o surrealismo com a mesma desenvoltura. Conquistou invejável situação acadêmica ao chegar a professor de Comunicação, da Universidade Federal do Ceará, mas abandona a promissora carreira para se dedicar exclusivamente ao projeto poético que desenvolveu pelo resto da vida. Apesar de se considerar maldito, em alguns momentos até satânico, quando sentiu a saúde claudicando de uma certa moléstia, se jogou nas mãos de Deus, trajando-se do hábito tradicional dos franciscanos e cultivando longa barba de eremita. Será que essa dualidade de comportamento não caracteriza uma atitude barroca? É a partir dessa indagação que outros caracteres vão surgindo, principalmente os que saltam dos seus textos. Suas dicotomias fartam os textos, fartam a vida. A carne e o espírito estão em permanente litígio. A água e o fogo se dão as mãos. O Acaraú, um rio magro se inscreve no seu corpo magro e José é o rio, e o rio é Alcides. O seu aproveitamento da vida, contrariamente, não deveria lhe incutir o medo da morte. Mas sua poética tem momentos que dão a impressão de que no sétimo palmo da cova aberta, a língua da terra lambe os beiços da fome pelo corpo prestes a lhe ser servido. Por isso que em "O Sonho", quando Nara se apaixona, é por "um rapaz marcado com todos os sinais da morte". Quando Alda de "Estação da Morte" trai o marido enfermo do hospital, se entrega ao médico diante dos gemidos dolorosos dos doentes que se contorcem. É todo tempo Eros e Thanatos de mãos dadas sem nenhuma objeção das partes. É por isso que sua escritura é recheada de dicotomias como Deus e o Demônio, o sagrado e o profano: "Estou dividido ao meio, pelo umbigo entre o reino de Lúcifer e o de Cristo". A sua escritura oscilante entre dois polos de atuação da fé, entre o pecado da carne e sua sublimação, entre o crime do pecado e o castigo da ousadia, o coloca numa atmosfera barroca produtora de antíteses e variações constantes de pontos de vista. Do imaginário ele pula para o real, do ódio para o amor, da maldade para a bondade sem que nessa passagem haja qualquer ritual de preparação. Mesmo saindo de um delírio para a conscientização de um momento de lucidez, o leitor que o acompanha na trilha do texto tropeça nessa inesperada mudança e se pasma entre o Alcides Pinto à nossa imagem e semelhança e aquele duplo que ele não se preocupa em revelar quando menos se espera. Alcides Pinto não domestica seu duplo, não amansa sua fera interior. Por isso que mansidão e violência são servidas no mesmo cálice de grandeza e miséria. O personagem generoso não se peja de se apresentar de inopino travestido de egoísta. O perdulário e o misantropo se manifestam quase que simultâneos na mesma criatura. Essa riqueza de faces demonstra o lado teatral desse criador de divindades. Seu texto é um palco onde florescem atores e máscaras que não distinguem comédias e dramas. O seu trabalho de diretor dessa encenação é amenizar antagonismos, humanizar as criaturas vítimas de incompletudes ou marcadas por excessos. Daí que o "belo horrível" é o tema de seu drama barroco e o absurdo é dissecado no palco do texto, mostrando seu avesso. Amansador de demônios, quem ingressa no seu "Equinócio", termina por ter pena do pobre diabo enfraquecido que ele põe no palco. A racionalidade com que ele trata a "coisa ruim" termina por criar uma humanização comprovadora de que o demônio é uma criação humana, e assim sendo, seu grau de periculosidade pode ser manipulada pelo próprio homem. O cabresto, as rédeas e as esporas que ele usa no seu amansamento são feitos de palavras. Ele fareja a superfície desprevenida dos seres e quando ausculta uma fissura nessa estrutura, mergulha em prospecção, buscando a estrutura profunda onde se agasalham os ingredientes de sua escritura. É aí onde se aloja o mistério da palavra como reveladora do mistério das coisas. A luz que ele acende nos interiores é a responsável pela transfiguração operada. Essa busca de desvendamento de paisagens interiores faz com que os críticos não consigam uma unanimidade de qualificação de sua escrita. É por isso que muitos ficam circulando em torno da explicitação de suas temáticas. Talvez desses seja Dimas Macedo quem melhor define suas matrizes temáticas: "a lírico-amorosa, a pornô-fescenina, a épico-social e a existencial-diabólica". No entanto, a argamassa com que ele constrói esses momentos temáticos, unindo palavras potentes numa sintaxe formadora de um estilo único, não tem sido analisada como merece. A estilística multifacetada de Alcides Pinto instaura um discurso curioso, oscilante e tão cheio de surpresas que só os grandes mestres do barroco um dia projetaram. Esse viés é que necessita de um desbravamento por quantos queiram lhe entender os alicerces. Por conta dessa riqueza literária de Alcides Pinto, verdadeiro cultivador de metáforas, estilos e personas, é que ao longo de sua existência produtiva acumulou leitores fiéis das mais variadas espécies, tendo em vista que sua escritura sempre foi um banquete onde os mais variados quitutes foram oferecidos. Dentre os aficcionados seguidores de suas trilhas literárias está Dias da Silva, que vendo nele o poeta "múltiplo e uno" que sempre foi, procurou ingressar nas suas análises de crítico por uma porta que poucos utilizam, a da essencialidade. Esse crítico procurou entender a personalidade alcideana que se aloja na raiz do texto. Constatou que a real biografia de Alcides Pinto está transcrita na região mais profunda de seu texto, lá onde o duplo confraterniza-se com o Alcides que deparávamos no dia a dia. É lá nessa zona sombria que a luz da leitura precisa chegar para se entender essa personalidade curiosa e tão rica que faz de Alcides Pinto uma das vozes mais ricas da literatura brasileira dos últimos tempos.

 

24/11/2009.

 

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