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  • Foto do escritorBatista de Lima

O açude dos passarinhos

Batista de Lima




Os dois açudes lá do sítio sofreram com as últimas secas. Um chegou a secar; o outro, quase. Um açude seco parece a boca aberta de um morto. Morre tudo em seu entorno e no porão a lama seca lasca. Nada sobrevive, e o pescador só pesca a dor do açude seco. É triste, mas mais triste é quando ainda resta um pouco de água e os bichos vêm bebê-la. As vacas que não morrem com a lama bebida, abortam as crias que porventura carregam amojadas.

Como tudo na região fica seco, todos os animais da mata próxima vêm também desfrutar da pouca água do reservatório. Passarinhos chegam de longe transportando suas sedes, mas também vêm animais de maior porte como veados, raposas, guaxinins, pebas, tatus, onças vermelhas. Toda a fauna, para não fenecer vem disputar as últimas gotas da água. Essa vinda desses habitantes da serra pode ser a última, pode ser uma viagem sem retorno, e isso é o que punge o coração de quem possui sensibilidade.

Os caçadores inescrupulosos armam suas arapucas à beira d'água para aves e pássaros e fazem barracas na lama de onde alvejam os animais de maior porte. É uma matança sem piedade. Devastam a ecologia muito mais que a própria seca. Mesmo assim há quem sinta esse drama por que passa a natureza. Entre esses que se preocupam, e não são muitos, sempre se colocava meu avô paterno conhecido na nossa região como Osmundo Batista, do Taquari.

Esse meu avô sempre condenou essa prática devastadora. Ele sempre sonhou em construir em lugar ermo um reservatório só para salvar os bichinhos da serra. Morreu, no entanto, sem ver esse sonho realizado. Seus filhos, no entanto, que nunca dividiram a terra que ele deixou como herança, resolveram recentemente realizar aquele sonho de construir o açude dos passarinhos. Daí que se juntaram com alguns dos netos, cotizaram-se e terminaram por projetar o açude no local mais ermo do sítio.

Contrataram um trator que conseguiu chegar ao socavão de serras que fica entre o Morro do Cruzeiro, o mais alto da região, e a ponta da Serra das

Almécegas. Ali, depois de vários dias de trabalho, o açude estava construído com parede de terra e sangradouro previdente. Mesmo com as poucas chuvas dos últimos anos, o açude encheu, segundo alguns, por pura interferência dos santos protetores dos passarinhos, entre eles, São Francisco e o carpinteiro São José. Essas poucas chuvas também devastaram o simulacro de estrada feita pelo trator com erosão que dificulta o acesso de qualquer pessoa. Afinal, os passarinhos não querem perturbações de humanos.

A água dos passarinhos é azul da cor do céu onde Deus mora e do manto que cobriu Nossa Senhora. É uma água que pouco evapora. Pela manhã não há sol pois o Morro do Cruzeiro faz sombra, quando chega a tarde a Serra das Almécegas tapa a canícula e um lençol de sombra vem proteger àquelas águas, contra cânceres de pele. Da parede do açude, e de suas margens nada se avista de feitio de homem. Não se veem casas, nem roças, nem estradas, nem barulhos de coisas de gente. Dali só se ouvem cantos de pássaros e aves recreando nas águas em pura felicidade.

Se algum curioso perguntar como se chega àquele paraíso, não terá resposta. Os nativos mandam que vá perguntar aos passarinhos, patos, marrecos, mergulhões e jaçanãs. Foram colocadas algumas espécies de peixes em suas águas, mas são peixes impescáveis, que estão ali apenas para aplaudir o concerto dos pássaros. Aquilo é uma reserva ecológica tombada pela sensibilidade e pertinácia da família Batista e respeitada em contrição pela vizinhança autóctone. Até esse registro que agora faz este escriba não é bem visto pelos idealizadores daquela maravilha. Pois tesouro é algo que se esconde.

Há outra faceta daquele açude que chama a atenção. É que além das sombras que as serras lhe estendem, as árvores das suas margens se estendem sobre suas águas como nuvens que protegem o céu.

Aliás, ali é o céu dos passarinhos, sob a proteção dos dois santos já citados, além de uma mãozinha que é dada por Santa Luzia, cultuada no Taquari e dos padroeiros das cidades vizinhas que olham aquele paraíso com vontade de nele fazer convescote. É São Vicente das Lavras, São João do Cedro e São Raimundo de Várzea Alegre que já encomendaram redes lá no tear do Céu, para armar debaixo de uma daquelas árvores e ficar olhando a festa dos bichos, coisa que existe pouco lá no Céu de Deus.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 25/10/2016.


 

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