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  • Foto do escritorBatista de Lima

O araçá a perigo

Batista de Lima




Hesito em dizer "sou do tempo disso ou daquilo". Dá ideia de isolamento, de descontextualização e extemporaneidade. Essas três palavras podem significar a mesma coisa e, ao mesmo tempo, trazerem significados diferentes. É como se, no momento, tudo fosse igual para todo mundo. E quem não se nivelar fica fora do mundo de hoje. Quem não se adaptar ao universo digital pode desaparecer do mundo dos normais. É tanto que os antigos calos dos pés subiram para as pontas dos dedos das mãos. Os digitocalos, de forma silenciosa, transitam da Quinta Avenida ao meu pé de serra com a mesma robustez. No lugar em que caçávamos araçás nos tabuleiros ergue-se uma haste de metal que traz o Papa e o Presidente Americano para cheirar nossas panelas.

Isolar-se hoje é impossível. Esconder-se, não há como. Aquela brincadeira de esconde-esconde se torna vítima do chip que vai no bolso do escondido. Eremitar-se, também não há como. Tudo está em toda parte, o que pode significar não estar em parte alguma. O grande olho de um grande pai nem pestaneja mais de tão vigilante que é. Ai de ti, meu araçá! Em terra de tantas "colas", mocororó não tem vez. Nesse mundo de hoje, os meninos são universais e amadurecem muito mais rápido. Estão em disparada porque os valores avançados da boca da noite caem da moda ao amanhecer. É preciso estar atento até durante o sono com o aparelhinho ligado para o despertar da mensagem que chega. O mundo real em tempo real inibe a imaginação e transforma todos numa boiada itinerante.

O contexto não varia mais. Tudo está quadrado ou retangular. Só os passarinhos que comem meus araçás é que ainda fazem seus ninhos arredondados como bandas dos ovos de onde vieram. Quanta sabedoria! Mas até quando? Nesse mundo contextualizado de forma homogênea, tenho medo de que o galo campina, que canta no meu pé de jambo, amanhã apareça travestido de Capitão América. Isso porque as pessoas já aderiram a essa homogeneidade de estar no mundo. Se eu olhar diferente da multidão, posso virar estátua de sal. Se não souber falar inglês, é melhor me jogar do viaduto. Se não for veloz, poderei ser atropelado por quem vem atrás. Se não a vacinar a cada mês, a criança morrerá antes dos 15. Se não fizer academia, pilates ou caminhada, morrerá antes dos 30.

O grande perigo é ficar extemporâneo. Nada de Freud, Marx e Nietzsche. Agora é Jobs, Gates e games. É preciso pensar igual. É preciso consumir o que mandam os aparelhinhos quadrados. Pela manhã, café com e-mails; no lanche, torradas chipadas; no almoço, esperar pelo cardápio do Obama; à tarde, suco de Facebook; e, à noite, sopa de WhatsApp. Para dormir tranquilo, deixar o televisor ligado, colocar o celular no travesseiro e o relógio digital no pulso com chip que acione de hora em hora a cotação do dólar. É preciso pensar como todos pensam, treinar um sorriso ao espelho para enfrentar as câmeras. É preciso estar sempre em pose porque estamos sendo filmados. Se desprevenir-se, cai na rede.

Essa neura globalizante está atingindo o imaginário. Pensa-se igual. Exige-se uma subjetividade única num acinte ao individualismo. Exige-se uma fala única em desrespeito à diversidade. Meu araçá da serra foi substituído por nêspera não sei de onde. As ameixas de tabuleiro deram lugar a melancias quadradas. Minha galinha caipira será trocada pelo frango de granja. Minha história de valentia ficou pequena demais diante da grandeza das hecatombes que pontificam no meu vídeo. Daí estar cada vez mais difícil a emoção diante de meus fazeres e aconteceres. Não se pode ser mais diferente. Tudo está sendo chocado em série para o momento de agora e que daqui a pouco estará em desuso.

É por isso que o futuro morreu de inanição no deserto do presente. Também não é mais possível contar histórias, enfeitando-as com a fantasia do narrador. O acontecido esvaziou-se de qualquer possibilidade de crescimento, tendo em vista que as câmeras gravaram tudo em tempo real. É impossível narrar os meus fantasmas, eles já se anteciparam ao meu discurso. Tudo já está tão formatado e informado que dispensa minha ousadia de recontar. O imaginário já possui sua fonte de produção, e é tão forte e tão presente que o roçado onde me planto está invadido com ferramentas tão potentes que minha velha enxada de plantar cismares enferrujou de desuso. Estamos nadando para um porto que não construímos.

Esse novo porto se abre para um universo em que tudo tem que ser igual e descartável. Há uma volúpia de superproduzir e hipergastar. Tudo em série, em um admirável mundo novo. É um mundo tão novo, tão planície que o regionalismo está sendo varrido dos seus territórios. O grande pai com seu grande olho não nos deixa olhar de lado, fazer curvas e criar atalhos. Bauman já alertou que nada mais está perdurando, que tudo se esvai entre nossos dedos com a rapidez da água da cachoeira. Não dá mais para curtir o instante que se precipita em velocidades. A essência das pequenas coisas já está produzida. Não me cabe produzir linguagens. Elas já estão prontas e embaladas para meu uso coroado de desuso.

Mesmo assim vou tentar encontrar meu araçá. Tentarei falar a língua dos homens. Vou me procurar onde me perdi. Lá sou amigo do rei. Pescarei, nessas águas tão claras, vestígios da lama dos tempos perdidos. Tenho certeza de que por trás dessa lâmina, que me encandeia, ainda dormem meus fantasmas. E eles clamam por ressurreição. "Alea jacta est". Como era gostoso o meu latim, meu livro de cabeceira, minha cuia, meu pote, minha tigela de barro, minha flor de maracujá, o cheiro do muçambê, aquele pé de alecrim que escapou no terreiro. O cheiro da melosa do final da tarde vem avisar que o inverno terminou e que é tempo de colheita, de preparar os caminhos para o verão que se inicia. É tempo de colher os frutos que o inverno nos mandou. É tempo de subir no pé de araçá antes que o machado amolado passe por aqui, derrubando tudo.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 12/04/2016.


 

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