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O aracati vai além

Batista de Lima


Matéria jornalística recente apontava a cidade de Icó como limite final do alcance do aracati. O aracati é um vento frio que surge do mar e invade o sertão. Já ouvi alguém chamá-lo de maral, o oposto de terral. O terral é um vento quente que vai da terra para o mar e aquece os jangadeiros na sua lida de pescadores. O maral vem do mar com sua frieza e invade a terra para amenizar o calor. Foi a partir desses meus parcos conhecimentos que li com gosto a bela matéria estampada neste jornal, da lavra inteligente de Melquíades Júnior. Ali consta que até documentário já foi produzido em torno desse fenômeno que tanto nos agrada.

O único senão da matéria é estabelecer a cidade de Icó como o ponto final de alcance da milagrosa brisa. Milagrosa, porque, por aquelas paragens, essa mudança de temperatura faz as pessoas se agasalharem mais cedo. É então que a produção de meninos também aumenta. Dito isso, posso me servir de exemplo, pois nascido em maio, calculo que o aracati tenha influído no momento em que fui gerado, afinal é nos meses de agosto, setembro e outubro em que mais se sente esse vento frio em contraste com o calor que grassa na região. Acontece que nasci e me criei a 50 quilômetros acima do Icó, às margens de um riacho afluente do Salgado e cultivei por muitos anos o hábito de esperar o aracati antes de ir dormir.

Criança, adolescente e até adulto, lembro-me de meu avô, dono de engenho, no município de Lavras da Mangabeira, ficar na calçada da casa grande, todas as noites, conversando com os filhos, os genros, os amigos e os trabalhadores, sobre política, Padre Cícero, Lampião, Luiz Gonzaga, cantoria, gado, rapadura, inverno e safra. Era um costume mais praticado de julho a dezembro, o que abrangia o período da moagem e a apanha do algodão. Não era comum no inverno, porque a grande calçada era descoberta, não havia alpendre. Entretanto, seguindo o costume sertanejo, era casa, ainda hoje em pé, mesmo estiolada, virada para o nascente, o nascedouro dos relâmpagos, trovões e chuvas.

Quando começava a escurecer, as pessoas começavam a chegar. Todos traziam uma novidade para contar. Meu avô ficava sentado numa cadeira de balanço, forrada de couro, do lado esquerdo da porta de saída da grande sala da frente. Dali, por décadas, prospectou sinais de inverno por cima da serra em frente. Tanto olhou, juntamente com sua gente, que uma baixa que há na serra, dizem por lá que foi a força de seu olhar na procura de chuva, que foi cavando aos poucos. Pois ali, naquela calçada, ouvi muitas histórias, muita sabedoria, nascidas da inteligência daquele povo simples e puro. Ali, assisti muitas vezes à chegada do aracati.

Na calçada ficavam os homens, na cozinha, as mulheres fazendo café e tapioca. E a conversa sempre tinha hora para terminar. Era mais ou menos às nove da noite. O primeiro sinal era um chiado de vento nas árvores da Serra das Almécegas a uns 500 metros de distância. O barulho era perfeitamente audível. Nesse momento, meu avô chamava por Zuleide, uma moça que ele criava. Ela então trazia uma bacia com água morna. Ele lavava os pés mas não usava toalha para enxugar. A brisa chegava e fazia o papel dos panos. Enquanto isso, contava sua última história e todos começavam a se retirar aos poucos, após um "boa noite" de despedida.

Essa brisa, que chegava, tinha o nome de aracati e fazia com que a temperatura baixasse uns dois ou mais graus de forma repentina. Todos se agasalhavam e a calçada ficava deserta. Essa brisa passava pelo Icó, subia pelo rio Salgado e enveredava pelo Riacho do Meio para chegar ao sítio Taquari, após escalar a famosa baixinha da serra, cavada pelos olhares caçadores de chuva. Isso não acontecia nos meses de inverno, por conta das chuvas que já esfriavam o tempo e molhavam as calçadas sem alpendre. Aliás, junho sempre foi o mês da cruviana, uma frieza que misturava o aracati com o frio do final das chuvas.

Aquela calçada com seu aracati de verão, além de proporcionar uma contação de histórias, também era palco de acontecimentos curiosos. Ali, na Semana Santa, os penitentes vinham em grupos, alta noite, cantar benditos lamuriosos e receber suas esmolas de rapadura, arroz, milho e feijão. Eles vinham em grupos de doze homens encapuzados, com opas e disciplinas. Enquanto cantavam, alguns se supliciavam com disciplinas que cortavam as costas desnudas. Era preciso que o sangue descesse pelo corpo até atingir a terra. Pela manhã, eu e meus primos íamos contar pequenas poças de sangue que os devotos deixavam no piso da calçada.

Foi esperando o aracati, naquela calçada, em um sábado de setembro, que ouvimos o início de uma cachorrada lá para as bandas do pé da serra, naquela noite de escuro. Eram muitos os latidos, e vinham em direção da casa grande. Quanto mais se aproximava aquele estrupiço mais as mulheres se trancavam nos quartos e os homens se armavam. Era um bando de cachorros atrás de um enorme veado que encandeado pelas luzes da calçada entrou de casa a dentro, sendo morto quando já alcançava a cozinha. O resto da noite foi de festa que se prolongou enquanto havia a carne da caça, e o arroz solto que foi feito na hora, além do aperitivo de "Madeira de Lei", uma cachacinha branca, que ficava debaixo do pote.

O aracati que passava pelo Icó e chegava até nós, trazia as pessoas à calçada para esperar pela brisa. Ali ficavam os mais velhos nas cadeiras, os mais novos no chão e as histórias rolando de boca em boca. Os trabalhadores vinham do engenho, cheirando a tiborna, cada um montado numa história nova. Era muita arte sem propósito. Era muita experiência acumulada. No terreiro, o gado cheirando a pasto também ouvia calado tanta sabedoria que ia passando dos mais velhos para os mais novos. Esse clima de harmonia, transcorria das seis da tarde às nove da noite, quando o aracati chegava, botando todos para dormir. Isso prova que o aracati vai mais além do Icó.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 06/03/12.


 

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