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Nossa Senhora da Pena

Batista de Lima


Nossa Senhora da Pena, proteja este pobre escribra para que alguma coisa que aqui apareça escrita não venha sem sentido claro, nem ferindo o vernáculo. Que o estro que por acaso exista não motive excesso nem extrapole a letra. Não permita elogio sem causa nem desaforo inútil. Que este texto seja o resultado de uma sangria sem nó, de um vasamento em verbo. Que a alma se ponha na frase, mas a forma não escravize o tema. Assim, com sua companhia e guarda, vamos descer às profundezas da teia e vamos fiar a tessitura da malha.

Divina protetora dos que da pena usam, proteja também o leitor, que continua pegando a alça deste texto, que transita e grita entre a mão que inspirada esculpiu e aquela que burilando fica. Que nunca a forma definitiva esteja, pois leitura que escrita não se torne, não foi lida muito menos entendida. Proteja as vozes que se entrelaçam aqui, proteja as falas que daqui se alçam. Se o leitor só ficar na pele, deixo abismo com mergulho impresso. Se a forma não mostrar o fundo, não há contexto instaurando texto. Cada texto, cada teto, quer-se feito de porão e sótão.

Protetora da nação escriba, proteja sempre a palavra certa, princesa dos nossos escritos, mãe primeira do sentido impresso. Que a palavra pavimente a trilha, que estradando meu pensar esteja. Mas não permita que meu dizer se torne atoleiro de leitor incauto nem floresta de mensagem escura. Que esta pena já se torne gaita, cujo som de vogais se faça, sem excesso de consoante em riste. Proteja a palavra pura, que vem repleta de alma, trazendo o cheiro da terra e a brisa que chuva anuncia. Que minha mãe esteja nela, minha infância e meu soluço, o açude do pé da serra e o cheiro do mel queimado que o engenho pregou na gente. Não esqueça do horizonte, que mesmo tocando a serra, não impediu que a estrada me roubasse daquela terra.

Protetora desta letra, que nunca me falte pena, para o rascunho preciso das dores dormidas n´alma. Que meus olhos conservados, com a luz que Deus me deu, possam ver, antes dos outros, esta roupa com que visto a nudez do meu dizer. Não se esqueça também de um pote de inspiração, feito trovão de estalo, desses que quando chegam, já tomam posse d´agente. Não importa onde estejam, que musas também não faltem, pois a vida destas letras foi também roubada delas. Não importa se de mesmo, seja a existência das fontes, pois escrita sem motivos, comigo já não existe. No final desta jornada, feita de motivo e letra, que eu me sinta esvasiado desta dor, desta quimera, que só continuam vivas no leito deste papel.

Nossa Senhora da Pena, proteja também meu texto, pois se manuscrito for, que o leitor desavisado interprete algaravias que de meus dedos se esvaiam. Quero também proteção para os meus olhos já cansados de tanta letra cursiva sem curso nem discurso, feito floresta de árvores, onde só restam garranchos. É letra de doutor apressado, na hora de passar receita, de cambista de calçada, quando vai cravar o bicho, de candidato político, em véspera de eleição. Mas a principal delas todas, dessas de endoidar quem revisa, é desses meninos que só digitam, mas na hora de ingressar, em curso superior, precisam fazer redação só de letra manuscrita. É professor usando lupa, tentando adivinhar o que o papel quer dizer mas dali nada sai pois colocado não foi.

Nossa Mãe padroeira do povo de Porto Seguro, protetora dos artistas, das ciências e das letras, proteja também os livros onde as coisas se espreguiçam ao se tornarem palavras. Esses livros esquecidos, em fundos de prateleiras, ressuscitam seus autores quando os olhos do leitor devassam suas páginas. Que esses livros guardados, para enfeitar gabinetes, cheguem às mãos de leitores com avidez de leitura. Afinal, além de matar a fome do corpo também é preciso matar a fome que assola espíritos famintos que buscam nos livros as viagens ao mundo que guarda os símbolos.

Nossa Senhora da Pena, padroeira de Jacarepaguá, proteja os poetas loucos, os menestréis das estradas, os travadores sem rumo que trafegam nos seus versos como se montarias fossem. Proteja os artesãos dos cafundós, os plantadores de nuvens, que sonham chuvas de verão, as moças que fiam redes com sonhos envarandados, o seleiro da ribeira e a oleira ciumenta que ensina à filha caçula a arte mais que milenar de pegar marido rico. Que o violeiro cego, que desfila pela estrada, não perca o rumo da rima, nem o polimento da métrica, pois verso de pé quebrado é sinal de pouca estima do autor com sua prima.

Senhora rainha das gentes que cultivam o sol da ciência, esses discípulos de Apolo também são filhos de Deus, precisam na sua razão, em tudo que vão fazer, que a mão divina proteja seus passos muito pensados. Que as pontes que eles fazem entre os dois lados dos rios sejam firmes na passagem de nossos sonhos e ânsias mas também de nossos filhos que vão levando consigo aquilo que lhes emprestamos. Senhora protetora, mesmo um poema que faço, com muita dor ou prazer, precisa de forma e de regra para o respeito do código.

Nossa Senhora da Pena, proteja sempre os cronistas, aqueles que fotografam o tempo, com a letra do momento. Que tudo que hoje se faz seja visto no futuro, seja impresso e preservado como prova de que o presente até parece uma ilha que se firma em continente que nós chamamos passado. Proteja também, Nossa Senhora, com cuidado e paciência, até com pena se necessário, este desajeitado escriba, que não aprendeu a fazer crônica, por isso vive a apelar a Nossa Senhora da Pena.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 03/04/12.


 

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