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  • Foto do escritorBatista de Lima

Nica e Livra

Batista de Lima



Nicanor convidou sua noiva para um convescote. A moça não era tão mais velha do que ele mas tinha medo de ficar no caritó. Também a dita cuja costumava ainda usar anágua e combinação. Por ser muito magra, cobria-se de muitos panos para que os enchimentos lhe dessem formas rechonchudas. O rapaz era sua última esperança de casório. Livramento foi o nome que lhe deram de pia. Nesse mesmo dia lhe deram também um pigarro para o resto dos dias. É que depois da criança romper três léguas na lua da sela co cavalo de seu genitor, debaixo de inclemente soleira, o padre batizador jogou-lhe água fria no cocoruto que quase a afogava. A careta que a menina fez não teve livramento que livrasse pelo resto dos dias, e do pigarro que adquiriu nunca mais se curou. Nicanor ficava absorto, às vezes até capiongo, na observância do palavreado de Livra, como apelidavam Livramento. Livra contava dos tempos de bela mocinha, quando dava rabissaca para o comandante do destacamento e para o gerente do Banco que a assediavam. Não teve flerte de que Livra não se livrasse. Com o tempo, no entanto, os interessados foram se livrando de Livra e a coitada baixando de categoria, já se exibia espilicute para soldado raso e contínuo de filial. Nenhum se entusiasmava de passar banhos e tirar batistério para bodas. Já estava frequentando estádio de futebol com bandeira e blusa do time de maior torcida, mas aqueles torcedores fanáticos preferiam olhar para os homens do campo do que para a donzela da arquibancada. Donzela, sim, porque Livra sempre pregara aviso aos pretendentes: só se livraria da donzelice quando casada fosse. Só ia a vias de fato com compromisso de padre e juiz, véu, grinalda e aliança. Finalmente aparecera Nicanor, o carrega/dor, como gostava de se titular. Afinal, o indigitado cidadão já passara por dezoito operações ao longo de sua trágica passagem até então por esse vale de pancadarias. Certa feita, devidamente trajado com sua cotoronga de pescar teve uma parte de seus possuídos levados por uma piranha maluvida escapada num poço de fim de inverno. Ao soltar fogos para Santa Luzia, em novenas dezembrinas, perdera para sempre sobrancelhas e beiços em foquetão explodido nas suas mãos, isso sem contar com o fura bolo e o cata piolho da mão direita que não se sabe onde foram parar. Outras pequenas tragédias foram acontecendo ao longo dos tempos e das carnes de Nicanor. Nicanor era uma cicatriz de um metro e cinquenta que ainda perambulava pelos socavões dos dias, rastreando vestígios de sorte. Mas agora encontrara Livra. Outras mulheres já passaram de trivela pelos arredores de sua tragédia. Mas sempre passavam e não voltavam, principalmente quando descobriam ser o indigitado, um arremedo de cacimba seca. Mas com Livra seria diferente. Queria amá-la pela conversa, apaixonar-se por aqueles olhos que a dordolha não venceu, por aqueles lábios que a boqueira apenas deixou duas manchas. O rapaz ria com todas as cáries quando Livra lhe chamava de Nica, ao pé da orelha. Os dois faziam planos que represavam nas barreiras dos janeiros que Livra carregava nos costados e no borralho em que se tornara o fogo de Nica. Passavam horas inventando um nome para o impossível herdeiro. Livranora seria o nome da rebenta que não rebentaria. Livranor se a vinga que vingasse, homem fosse. Já os dois pediam alvíssaras aos sessenta quando resolveram amarrar os corações diante da lei de Deus e da dos homens. Houve até quem ensaiasse um chá de panela para ela e uma despedida de solteiro para ele. E o enlace aconteceu diante dos olhos mortiços de São Sebastião e do manto azul de Nossa Senhora. Foram morar juntos num quarto sem fundo onde só cabiam a cama e o fogão. Mas como o amor é cego e a paixão tem catarata, os dois se aguentaram uma semana sem se perturbarem com as desavenças entre o pigarro de que Livra não se livrara e dos três pesadelos que Nica enfrentava todas as noites, em que piranhas comiam suas posses, burros lhe escoiceavam as costelas e barreiras despencavam nas suas costas. Na segunda semana, no entanto, Nicanor já sentia que uma nova dor lhe entrava pelos ouvidos e Livramento concluía que tinha algo de que se livrar. Na terceira semana, os dois silenciaram. Livra chegava mais cedo e Nica só vinha mais tarde. O quarto foi ficando mais só e os dois, mais distantes. Daí em diante Nica começou a dormir sozinho na cabeça de porco que mantinha na encosta do morro de Santa Terezinha. Dali via a cidade toda salpicada de neon como se fosse um estrelado céu. Livra ficara onde estava, aguando as horas presunçosas da noite com lágrimas de abandono. Mas os pesadelos dele sentiam falta do pigarro dela. Daquelas poucas noites de aconchego brotaram duas solidões solidárias. Nica vinha pela manhã tomar café preto de Livra sempre empunhando um pacotinho de bolacha Maria. Livra pregou o botão de baixo da camisa rota do visitante, depois passou a lavar sua roupa de cima, com pouco estava lavando a roupa de baixo. Nica trouxe-lhe um gatinho que encontrara na rua, Livra, no domingo, fez-lhe um guisado com sardinha. Como as coisas do afeto não se explicam, foi Nicanor que começou a contar histórias de aventuras escritas na sua pele e Livramento abrindo seu pequeno baú de onde pulavam retratos de artistas e papéis de bombom recebidos de antigos pretendentes. Essas coisas iam se amarrando, histórias e lembranças se espalhavam pelo chão entre risos e goles de café. Até que Nica resolveu acompanhar Livra para o jogo no estádio, depois da promessa da moça de ir ver a briga de galo na rinha do mangueiral. Um dia Livra foi conhecer o barraco de Nica e por lá ficou duas noites. Ouviu diferente os pesadelos do fiapo companheiro. Já Nica também não entendeu como o pigarro da companheira ficara mais sonoro. Daí em diante não foi difícil encontrar os dois aos sábados nas brigas de galo e nos domingos no jogo de bola. Para os amigos, não se pejavam em dizer que o pigarro é um pesadelo dos pulmões e o pesadelo é o pigarro do sono. E que um estádio de futebol é uma rinha onde vinte e dois galos se debatem e a rinha é um estádio onde dois jogadores se digladiam.

 

07/04/2009.

 

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