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Narrativas sóbrias

Batista de Lima


Uma sobriedade na arte de narrar é o que caracteriza os contos de Vânia Vasconcelos. Essa característica já fora detectada por Nilto Maciel nos comentários auriculares desse livro titulado de "Desvios". Até o título dessa coletânea de contos é sóbrio. Afinal toda linguagem literária já pressupõe um certo tipo de desvio. E também há o fato de outros títulos de seus textos serem muito mais significativos do que esse. Isso tudo não compromete sua criação literária. Pelo contrário, chega a surpreender o leitor.

Vânia Vasconcelos nasceu na Bahia, mas desde 1995 reside em Fortaleza. É professora de Literatura na UECE e animadora cultural em eventos de nossa cidade como as Bienais Internacionais do Livro, em 2004 e em 2006. Respeitada cronista, por dois anos manteve coluna em jornal local, sempre admirada pelos seus leitores, dada a excelência dos seus escritos. Dessas crônicas foi um pulo para chegar aos atuais contos. São contos de densidade pungente como é o caso de "Pietá", quando o filho viciado e comprometido com traficantes leva a mãe a comprar seu caixão adiantado, em módicas prestações.

Essa mesma abordagem ela instiga em "Do povo miúdo e seus labirintos". É que a personagem desse conto é a velha D. Miúda. Era rezadeira e curandeira, sempre atendendo a todos com suas rezas e plantas medicinais. Era mais acreditada pela população do que o médico local. Acontece que ao surgir sintoma de doença grave, precisa se deslocar à cidade grande para passar por cirurgia. Sua simplicidade, seu desamparo e a solidão levam-na a se perder na selva de pedra e a se tornar uma mendiga. Esse enredo é dorido e angustiante. Há nas histórias de Vânia, também, uma oscilação entre o sertão e a cidade. Nesses cenários ela borda paisagens humanas onde palavras são fontes de ambientação e se põem sobre um tecido anterior que são os costumes. É por isso que no Prefácio, a professora Sarah Diva Ipiranga aponta dicotomias que caracterizam a escritura de Vânia. São elas: sertão e cidade, pecado e salvação, o sacro e o profano. Outra interessante conclusão a que chegou a prefaciadora foi com relação ao "universo fronteiriço da marginalidade" que se instaura no conto "Desvios" mas que se detecta em outras narrativas.

Esse perigoso universo às margens da marginalidade às vezes não salva. É o caso, principalmente, de "Domingo Maior", um pequeno conto com apenas duas páginas, mas de uma profundidade enorme. O primeiro abismo que surge é a falta de desejo do personagem principal que se chama Inácio. Daí que o leitor conclui que a falta de desejo é fatal em qualquer um, o que pode levar o indivíduo a uma deriva que se não aparecer uma tábua de salvação, o suicídio torna-se a mais viável solução. No caso de Inácio, um travesti aparece e o salva, os dois se tornando uma dupla de assaltantes. Essa virada do quase suicida Inácio para a faceta de assaltante é uma forma, a única, de a vida lhe dar sentido.

É uma quebra de rotina, uma mudança de rumo que operado no personagem, termina por conseguir sua salvação. No nível do texto esse fenômeno também ocorre. O leitor vai seguindo os passos retilíneos que a autora traçou no texto e começa a ficar lenta a narrativa. É aí que Vânia Vasconcelos lança uma metáfora inesperada que desperta o leitor como um choque proposital. É um fenômeno que ocorre em todos os seus contos. Assim vão surgindo: "Um jardim feito de madrugadas", "pernas estúpidas", "sentiria falta dele como se sente falta de uma dor com a qual se costuma dormir", "a alegria deixa marcas de dedos onde toca".

Essas imagens inesperadas já se configuram como uma marca no estilo da autora. Até no seu conto principal, "Encontros com Gianecchini", essas surpresas estão postas para o nosso benfazejo tropeço. Esse conto de Vânia Vasconcelos pode figurar em qualquer antologia que preze pela qualidade. O poder da palavra não dita mas desejada fica patenteado nessa narrativa repleta dos dramas do cotidiano das pessoas serviçais. Além disso há toda uma influência das telenovelas no imaginário das pessoas. O poder simbólico de uma frase dita numa novela das oito modifica todo o comportamento dos actantes. Rosineide é vítima da palavra que se nega a pronunciar-se. Seu sonho se erigiu sobre a fala do ator da novela mas enclausurou-se no coração do amante enquanto era seu.

As falas que emanam dos textos se diversificam em cada narrativa a ponto do leitor concluir que a autora tem um conhecimento muito vasto de falares ou pesquisou antes de escrever. Entre essas falas pode-se destacar a linguagem do conto que dá nome ao livro. "Desvios" é uma narrativa repleta de gírias utilizadas no universo das drogas, com jargões de assaltantes e policiais. Assalto, vinho, pó e pedra se unem em torno de gírias que caracterizam os atalhos, os desvios. Cheirar, vazar e fumar são portas abertas para a instauração de uma linguagem marginal, um código que o leitor comum, se não estiver bem atualizado, vai necessitar de um glossário para o entendimento do texto. A voz que se ergue desse conto nasce do universo mais marginal da sociedade.

Por fim, depois de oscilar entre dicotomias as mais variadas, entre linguagens diversas, quase se chega ao final do livro. Acontece que boas narrativas não se encerram. Daí que esses "Desvios" são intermináveis. Principalmente na elaboração dos finais dos textos, Vânia pede o apoio do leitor. Divide com o leitor o destino dos personagens. Muitas histórias reverberam após a leitura. A gente vai, ao fechar o livro, elaborando finais, traçando destinos que não se sabe se são dos personagens, da autora ou de nós próprios. Os "Desvios" de Vânia Vasconcelos são agradáveis nos seus cursos e percursos. Não há grandes invencionices textuais. Há sensibilidade, ternura e criatividade na sua arte de narrar.


jbatista@unifor.br

20/12/11.

 

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