top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Mínimos detalhes

Batista de Lima



Há uma distância que se elastece entre o que um dia fomos e o que agora vamos nos tornando. Maior distância, no entanto, vai crescendo entre o que fomos e o que agora pretendemos ser. Por isso que há momentos em que sentimos uma enorme saudade do mundo, mesmo estando ainda hospedados nas suas dimensões. De minha parte, sempre vou com os meus, quando eles se vão. Velo-me quando velo os que me são caros. Não são apenas eles que se vão mas sou eu que me afasto de mim. Quando meu avô se foi, levou-me uma banda e a manta de proteção dos dias de trovoadas. Dona Luíza Anacleto, quando se foi, levou a força do muçambê na cura de dor de dente, quebranto e espinhela caída. Minha mãe levou o sol da madrugada, o cheiro da cozinha, a alegria da mesa e o lençol quente das noites de chuva. Canlima se foi, levando a eterna solteirice e a possibilidade de se viver bem sem fazer nada. Agora vieram me dizer que se fica velho quando se passa a cantar loas aos mortos e se esquecer dos vivos. Outro me disse que se fica velho quando vemos no espelho o rosto do nosso pai muito mais que o nosso. Mas uma coisa é certa, estamos envelhecendo quando frequentamos mais os cemitérios que as baladas, mais missas de sétimo dia que festas de quinze anos, mais os templos que as praias. Nesses momentos de mais luar do que sóis, é preciso acorrentar os fantasmas que nos vêm ferir com o canto dos galos impenitentes. Afinal, a insanidade desses dias crus clama mais por cura do que por luto. E o cozinhamento da rotina pede mais lenha. A lágrima despencante pede mais choro, gemido, berro e alarde. E a vida vira uma luta de esgrima num quarto escuro, ou um pau-de-cebo que temos de escalar para encontrar uma nota falsa na ponta. É nessas horas que o vasto país do coração entra em estado de sítio. A desordem se instala em suas províncias, a ferrugem em seus portais e a maresia passa a corroer as esquadrias das tardes. É então que a noite se torna uma nuvem escura que se aproxima sem trazer chuva nas suas entranhas de fome. Ficamos então sem saber se lavamos as mãos ou molhamos os pés, se montamos o corcel de patas de sete léguas ou nos recolhemos liquefeitos aos potes plenos de relembranças. Por falar nisso, tínhamos um engenho que foi fechado. Acabaram as canas e não notaram o ódio do canavial que ficou impresso no massapê desnudo. Não notaram a revolta do verde desempregado e o suor dos trabalhadores que se foram e que virou tiborna ainda impregnando as veias da terra. Dessa paisagem, só ficou em pé a casa do engenho que ainda se nega a tombar sob os golpes dos presságios. Seus arredores são uma pele em erupção que tangeu os sonhos para se esculpirem por trás da curva da esperança e do dorso do anoitecer. Diante desse cenário, é difícil ser completamente feliz. Por outro lado é impossível ser feliz sem alguma crueldade. Se não te firo, não te atinjo o coração. Se não me feres, não adentras a casa do ser que sou. Se olho para trás, o espelho grande me fotografa interrogativo. A imagem que ali se forma é uma pergunta esculpida. É por conta disso que minha geração sonambula pelos rios do tempo. Se não vai em frente é porque mantém um pé fixo nas ribanceiras do atrás. Ainda bem que os pesadelos só existem enquanto o sono dura. Salva-me pois deste agora tempestade. Esta cidade é minha demência e vive me carpindo em noites feitas de insônia. Se sou asas, ela põe ovos de chumbo. E as horas desoladas se penduram nos cabides da esperança onde vampiros sugam as horas pendurados. Todavia, o vento que nos chega à noite, traz o clamor de cidades invisitadas. Conta histórias malassombradas e traz o suspiro solitário de donzelas desejosas. Esse vento libertário nos dá asas e desejos de acorrentar o tempo que ansia em disparar. Por que esse vento prefere chegar vestido de treva? Parece que os mortos respiram pelos seus poros e que seus mistérios não se dão com claridades. É, portanto, muito difícil ser feliz nessa paisagem escamosa, porque enquanto a felicidade está em detalhes mínimos, nós a procuramos em hecatombes e cataclismos. Isso faz lembrar o bilionário que não conseguia ser feliz e ao procurar o seu guru, foi orientado a procurar um velho num pé de serra que possuía uma camisa milagrosa, que vestida, trazia a felicidade. Depois de muita procura, o velho foi encontrado na beira de um açude, brincando muito feliz com algumas crianças. Quando foi perguntado sobre a famosa camisa, alegou para o bilionário que nunca tivera uma camisa e que vestia seu dorso com a água do açude, a brisa da montanha e o sol de cada manhã. Outro caso de muita felicidade era da velha freira do convento que se sentia extremamente feliz, por 40 anos, ao alimentar alguns gatos que engatinhavam pelas alamedas do jardim. Outros casos de felicidade conseguida não precisaram de conchavos, conspirações e eleições. A felicidade está ao nosso alcance mas temos a mania de colocá-la onde não estamos. Tão precioso é esse bem que os sábios aconselham que a escondamos muito bem, porque os tesouros mais caros são os que melhor escondemos. Se ela vier esfarinhada em mínimos detalhes como ouro em pó, que tentemos vivê-la grão por grão. Estamos aqui, nesse vale de lágrimas para sermos felizes. Mesmo no meio de distúrbios, de mortes e terror, nossa batalha é em busca de uma felicidade. Nunca nos satisfazemos com o momento que vivemos. Sempre queremos um bem a mais e é aí onde mora a razão de viver. Sonhar é projetar para outro dia, uma realidade que vivemos agora, isso depois de confeitá-la com tantos anabescos que a distância entre o que somos agora e o que pretendemos ser, fique cada vez maior.

 

10/02/2009.

 

3 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page