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Mucuripe revisitado

Batista de Lima


Todos os temas da nossa cultura estão contemplados. Afinal, tudo transita pelo porto. Dos produtos de exportação ao que importamos, o Mucuripe é a cancela para quem entra e para quem sai. Mas o livro é também um ancoradouro onde tudo isso chega e se armazena. O texto é depositário do que passou pelo porto. As pessoas por lá passaram em direção a distantes paragens, ou por lá chegaram, encontrando uma Fortaleza de braços abertos para recebê-las.

Rodolfo Espínola retorna ao Mucuripe ao lançar a segunda edição de seu livro "Caravelas jangadas e navios: Histórias do Ceará - Resgates e Contrastes". Na primeira edição ele chegou ao porto numa embarcação simples, construída pela Omni Editora, em 2007, montada em 256 páginas ilustradas. Agora ele chega ao mesmo porto em um verdadeiro transatlântico, desses que cruzam os mares exibindo luxo e ostentando riqueza. Desta feita é um projeto gráfico local, o que surpreende pela roupagem bem mais rica que a primeira.

Agora é a Expressão Gráfica Editora quem confecciona a nova edição, com um acréscimo de 253 páginas, o que torna o livro alentado no seu formato físico e mais substancioso nos seus arremates conteudísticos. Isso porque outras fontes, antes não vasculhadas, vieram agora à tona, resultado do mergulho mais profundo nesse manancial enorme que é a história de nossa cidade e o perfil do nosso povo. Tudo no entanto passa pelo porto como uma boca aberta da cidade para deglutir esse vasto mundo lá de fora que nos chega embarcado. Esse livro é um documento que faltava no acervo da nossa memória.

Todos os temas da nossa cultura estão contemplados. Afinal, tudo transita pelo porto. Dos produtos de exportação ao que importamos, o Mucuripe é a cancela para quem entra e para quem sai. Mas o livro é também um ancoradouro onde tudo isso chega e se armazena. O texto é depositário do que passou pelo porto. As pessoas por lá passaram em direção a distantes paragens, ou por lá chegaram, encontrando uma Fortaleza de braços abertos para recebê-las. O olhar de Rodolfo Espínola é vasculhador, vai das profundezas das águas ao vôo metálico dos aviões do progresso. Lê uma cidade e sua belle époque.

Essa belle époque representa mais de setenta anos em que essa loura se penteia, se aformoseia para ser desposada pelo sol, beijada pelo mar e enfeitiçada pela lua. "Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba; verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros; serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro e manso resvale à flor das águas". Esse canto de recepção do nosso gênio romântico alencarino é um abrir-se em portas de nossa cidade com o abraço afetuoso para quem está de chegada.

Cada cearense é um porto de portas abertas, é uma mão estirada em aconchego, é um abraço de muitos braços e afagos. Por isso que Rodolfo Espínola não mede limites para mostrar a receptividade com que este povo hospitaleiro abre as portas da sua morada para o viajor que de longe chega. "Iracema", de Alencar; "Porangaba", de Galeno não são apenas lendas em torno de nosso bem receber. No livro há fotos de cearenses em pleno convescote com visitantes que aqui aportaram com ares belicosos como os soldados americanos que aos milhares fizeram de nossa pacata cidade, trampolim para as batalhas sangrentas na África da Segunda Guerra.

No livro também aportam intelectuais, poetas e menestréis que singram os mares da inspiração e cantam o porto e suas cercanias, as naus de longo curso, as alvarengas laboriosas e as velas pandas das jangadas retornantes. Fagner e Ednardo, Irapuan Lima e Luís Assunção captam o rumor das ondas, escutam o siciar do terral e a brisa do maral para esculpir suas melodias entre sóis, sais e ais. Da mesma forma Adriano Espínola e Vicente Alencar, Luciano Maia e Artur Eduardo Benevides cantam e encantam, com seus versos, as delícias da brisa e os mistérios do mar. Fausto Nilo ilumina sua composição com o sol de Fortaleza. Francisco Carvalho observa que "No Mucuripe um mar de alfanges dorme,/ Um búzio engole o sol. Sangra um rei que se alegra. / O obsoleto Farol lembra a pupila negra / De um deus que cansou do seu fastio enorme / (…) Mucuripe dos ventos movediços. / Coqueiros canibais se arqueiam no horizonte. / Retalhos de algodão tremem no céu."

O porto, no entanto, não é apenas fonte de inspiração dionisíaca. Apolo fustigou homens de visão futurista que nas suas imediações construíram o progresso, forjando a industrialização. O trigo chegou e foi beneficiado por empreendedores como os formadores dos grupos empresariais Macedo, Jereissati e Dias Branco. O combustível de nosso dia a dia pelo grupo Queiroz, que depois dessa preocupação para com a nossa estrutura de superfície, preocupou-se com a estrutura profunda do nosso mar de gente, ao criar uma universidade que se consolida na formação intelectual do cearense. Em 21 de março de 1973, Jarbas Passarinho, então Ministro da Educação foi enfático nas suas palavras, na sua aula inaugural da Universidade de Fortaleza, Unifor, ao dizer: "Vi um homem chorar e uma Universidade nascer". Essa grande embarcação que é a Unifor flertou primeiro com nossa cidade pelos caminhos do porto e depois deixou-se criar pela visão futurista de Edson Queiroz e administrar pelo seu filho chanceler Aírton Queiroz.

Todos esse ingredientes vão compondo o livro de Rodolfo Espínola. O que poderia ser apenas a história de nossos portos se torna a história de Fortaleza. Essa cidade está erguida sobre um monturo de memórias, ora alegres, ora tristes, mas todas com o olhar para o futuro, para o bem-estar das gentes. Por isso que todo esse material histórico, garimpado por Rodolfo, configura-se na abertura de caminhos para que estudiosos desbravem nossa história construída a suor e sangue por nossos ancestrais. Fortaleza é inesgotável como fonte, e nós leitores insaciáveis na nossa sede de mais conhecer. Rodolfo Espínola, ao escrever esse livro, encontrou uma fórmula de reconstruir a Fortaleza que tanto queremos, que tanto amamos um dia e que teima em se distanciar dos nossos sonhos. Daí que ler esse livro não é só revisitar o porto mas também encontrar nossa identidade como porta aberta para a construção da cidadania.


jbatista@unifor.br

01/06/10.

 

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