top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Metáforas de água

Batista de Lima


Lembro-me de uma época em que Adriano Espínola nos apresentou um Manifesto Água. Era um texto revolucionário sobre estética, um embrião para respaldar um novo movimento literário. Eram tempos Pós-Siriará e estávamos dispersos numa verdadeira diáspora, cada um cuidando de projetos pessoais. Aquele texto nunca foi divulgado, apenas lido por poucos próximos a Adriano. Era no entanto um dilúvio metafórico que algum dia estouraria.

Agora esse dilúvio já bastante controlado nos vem concretamente esculpido numa coletânea de contos que o autor chama de relatos e que traz o título de "Malin-drânia", produzido pela Topbooks, em 2009. Como sempre foi, Adriano Espínola continua urbano, habitante de uma cidade vitimada por inundações. É difícil encontrar um relato que não seja marcado pela metáfora da água. A cidade um tanto fictícia traz contornos e alguns logradouros do Rio de Janeiro. Parece que o autor profetiza as recentes inundações que vitimaram aquela cidade.

Esse direcionamento para as águas atinge até os principais títulos dos textos: "As cordas do mar", "A onda", "A torneira" e "Arpoador". No primeiro, tudo é fluente, "a luz da manhã começa a escorrer por entre as frestas da janela (...) A bem aventurança é um estado d´ água - tem um frescor e fluidez. Ali, a liberdade era literalmente líquida. (...) O homem sem os deuses e uma tábua qualquer no mar não é nada". Em "A onda", o autor singra "um pedaço de mar aberto sobre o mármore da pia". Em "A torneira", essa estética da inundação burila um pingo gigantesco que prorrompe do interior do poeta, rasgando suas entranhas em forma de cálculo renal.

Em "Arpoador", as areias da praia constituem "os lábios" de um mar, beijados por surfistas que "deslizam sobre o peito enrodilhado das águas". Esse cenário de dilúvio alaga os textos numa dimensão tão líquida que o leitor oscila entre o mergulho ou o simples nadar sob pena de se afogar num turbilhão de metáforas que procelam inundantes. São ondas que não se contentam em comportar-se sobre o mar, mas invadem a cidade e alagam o calçadão, atravessam o asfalto e se enroscam nas pernas do poeta. Essa obsessão pelas águas, que escorrem dos textos, leva o leitor a correr o risco de um afogamento que não se concretiza porque os contos são curtos e possibilitam um retorno à tona antes que o fôlego traia a pequenês dos nossos pulmões.

Esses mergulhos na estrutura profunda das narrativas de Adriano Espínola colocam o leitor diante de algumas interrogações que são muito mais respostas que perguntas. Assim, pressupondo-se que suas águas são marítimas, onde está o sal dessas águas? Em nenhuma oportunidade a palavra "sal" é utilizada no livro. Ou o texto do autor é a própria salina onde o mar se cristalizou? Depois, nos seus livros anteriores, que também são relatos em forma de versos, o poeta é uma onda que invade eroticamente a cidade de Fortaleza, fertilizando-a de metáforas, sais e ais. Agora é o Rio de Janeiro que ele invade, montado nas crinas do mar. Isso é uma bigamia poética, ou Fortaleza foi descartada de seu estro criativo atual?

A bela capa de Miriam Lerner vem auriculada de pedaços de contos que se interrompem no meio de períodos narrativos que obrigam o leitor a garimpar, no seio do livro, onde continua o regato dos signos conclusivos. Está correto? Será modismo ou uma achega provocante de leitor desavisado? O certo é que as narrativas de Adriano muitas vezes conduzem avarias metafóricas camufladas por espelhos d´água que dão a impressão inicial de uma superfície plana mas que na realidade são armadilhas tão bem urdidas que o leitor precisa ir fazendo um recapeamento para não ser tragado por vertigens. O fantástico extrapola as dimensões do texto e contamina o leitor a ponto de, vítima desse aguaceiro, contrair renite, constipar-se pelas vias respiratórias, ter necessidade de enxugar-se após a leitura de cada conto.

Suas metáforas líquidas escorrem pelo nariz, pelos olhos, pelos poros do leitor e até pelo "pescoço bêbado dos postes". Há um estado d´água, um frescor, uma fluidez tão intensos que o mundo estertora espumoso. Para ele, o baque é úmido, a Avenida é Atlântica, o mar é bravio, as nuvens são estrepitosas, os deuses são relampejantes, as ondas são "um animal agitado a se enroscar espumoso", o agora é vertiginoso, as narrativas são caçadas como se bichos fossem, as lutas são verbais na perseguição do inatingível, as coisas têm dorso metálico, a maçaneta é sisuda, o silêncio é vegetal, "o bule do café soluça feito um enigma apaixonado", a tarde tem asas circulares e o vento tem vestes visionárias.

As narrativas de Adriano Espínola são um canteiro de encantamentos onde palavras são coisas e coisas são palavras. Malindrânia é uma cidade onírica onde o mar vem fazer convescote. Engenhoso surfista, cavalgador de ondas oníricas, sua cidade desconhecida um dia teve verdes mares bravios hoje tem ocas brancas (caris) que um dia os índios expulsos condenaram às águas. Malindrânia é uma construção verbal, oscilando entre a pele escamosa das águas malinas e os abismos da memória onírica. Para ingressar no seu reino aqualino é preciso escudar-se com seu elmo de Mambrino que foi desta vez surrupiado do cavaleiro manchego.

Essas peripécias desse narrador debutado nas franjas do verso livre e que agora fixou-se nas ribeiras dos sonhos, para narrar as fantasias das águas, são manifestações de um duplo que Adriano esqueceu de acorrentar. Cansado de encabrestar anjos e demônios nos abismos que transporta, o cavaleiro poeta soltou seus rocinantes e os deixou à deriva. O que resultou desse Grito do Ipiranga foi a liberação de entes marinhos, invadindo cidades e re-educando as gentes. Esse narrador cavalga duendes e sereias e com seu martelo milagroso forja uma literatura fantástica onde os potes, açudes, caixas d´água e torneiras são quebrados para a libertação das águas, dos sonhos, dos sais, dos cais e dos ais.


jbatista@unifor.br

04/05/10.

 

1 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comentarios


bottom of page