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Metáfora de sol


Batista de Lima





O texto grita pelos seus vazios. Se externos e mais acústicos, são metonímicos. Se internos, instalados nas estruturas profundas, são metafóricos. Difícil pois é instalar um sol nas profundezas sombrias e subjetivas, numa espécie de pré-sal que o texto transporta. A instauração dessa luz subterrânea é que provoca o surgimento da literariedade.

Foi exatamente através de uma escavação nessa pletora de significados que fui perceber onde Nilze Costa e Silva construiu seu ninho temático. Lá está um vazio repleto de rebeldias, de estranhamentos e desassossegos. Essa prospecção é possível através da leitura dos textos desse seu novo livro intitulado “Tudo por causa do sol”, da Scortecci Editora, neste 2008. A ficha catalográfica rotula o livro como sendo de contos. A autora, no entanto, na apresentação, chega a afirmar: “Os leitores mais embasados poderão chamar esses meus relatos de contos, crônicas, diálogos ou farpas literárias”. No mesmo texto ela justifica porque escreve: “… escrevo porque vivo e sinto com muita intensidade este mundo que me cerca, com suas paixões, ódios, raivas, alegrias, tristezas e decepções”.

Logo no primeiro conto, que traz o mesmo título do livro, a autora utiliza a metáfora do ardor de uma cebola cortada em comparação com o erotismo insinuante do sol. A partir daí o leitor pode utilizar a mesma cebola para desencapá-la pele por pele em busca de um interior que o texto proporciona. Nesse mergulho em busca de um interior encoberto, muitos sóis se delineiam para iluminar a penumbra da subjetividade textual. Há então uma causa por trás dos escritos de Nilze Costa e Silva. A mulher, em sua obra, é o foco temático. Ela adquire uma desenvoltura de resistência e destemor, como Betina de “O tênis cor-de-rosa”. A pungente história mostra uma pobre menina que aos nove anos ganhou um tênis cor-de-rosa dois números menor que o ideal para seus pés. Betina está para Nilze Costa e Silva como Macabea para Clarice Linspector. Há uma transfiguração que se projeta dessas personagens. Por conta disso é que Nilze se inscreve nesse seleto grupo de escritoras cearenses que apresenta personagens femininas fortes nos seus posicionamentos, como é o caso de Emília Freitas, Francisca Clotilde, Rachel de Queiroz, Eloneida Studart e Joyce Cavalcante.

A coerência literária de Nilze com as bandeiras que defende, já desponta antes mesmo das narrativas. Da sua atuação em defesa das minorias, em prol de uma diversidade de tendências, como militante da pós-modernidade, ela pula para as epígrafes que ilustram cada uma de suas narrativas. É como se a epígrafe desse o mote do que se vai ler. Quando trata da curiosa Zefa, personagem do conto “Jornal da manhã”, ela utiliza como epígrafe, uma passagem do “Êxodo”, que já apresenta ao leitor a opção sexual da personagem. Zefa fumava charuto e suas mãos exigiam corpo macio e delicado de mulher. O desprezo que recebia dos circunstantes levou-a a engolir veneno para ratos. Essa sua última fala reverbera tão profundamente no leitor que ele se vê também responsável pelo martírio de Zefa e procura solver um pouco daquele veneno porque sabe de sua responsabilidade pelo desfecho, e sabe também que é exatamente Zefa quem menos tem culpa de toda a situação.

Em “Os cabelos de Eva”, de novo a mulher forte com seus longos cabelos, vítima da violência por parte do companheiro, liberta-se como uma Joana D'Arc e se livra de sua cabeleira num papel inverso ao mito de Sansão, já que sua força está muito mais no cabelo cortado como vingança.

Essas narrativas vão desfilando nas retinas do leitor de forma que ele nem nota que a autora salta do conto à crônica com tal desenvoltura que a única diferença enfatizada é que, nos contos, o foco se direciona para personagens femininas e nas crônicas ela trata mais dos homens, a partir do poeta Mário Gomes que tem um esboço mitificado em “Água gelada em dente cariado”. Mas fica por conta de “Folhas caídas”, o momento mais sublime do livro, quando a autora faz a apologia do ambiente ecológico e a necessidade de sua preservação, simplesmente através da narração de seu relacionamento com uma simples espirradeira. É pungente essa narrativa, porque há uma personificação daquela plantinha, a ponto de sua morte se tornar um despetalar de nossa sensibilidade.

Esse novo livro de Nilze Costa e Silva se divide em três momentos: “Histórias de vida”, “Histórias divididas” e “Diálogos”, e sua melhor opção de leitura é começar do fim para o começo. Pois na última parte do livro é onde se encontram os textos mais circunstanciais da autora. É lá onde estão reveladas suas leituras, suas intertextualidades e suas vivências.

Nessa última parte prevalecem os poemas, e através de sua leitura pode-se traçar o perfil biográfico da autora. Na segunda parte estão as crônicas e é nelas onde a autora se posiciona com relação ao mundo em que vive. Opina, interpreta e protesta. Finalmente a primeira que é pura ficção.

É através dessa estruturação que já se revela a rebeldia nilzeana. Ela faz questão de ser diferente, inusitada e surpreendente. E aí não precisa de regras. Pode pôr em prática a própria frase de Frida Kahlo que é utilizada como epígrafe de sua homenagem à artista: “Pés, para que servem, se tenho asas para voar!”


14/10/2008.




 






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