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Memórias de Margareth Medeiros

Margareth Amaral Medeiros não se conforma em frear a sanha corrosiva do tempo


Batista de Lima


Margareth Amaral Medeiros não se conforma em frear a sanha corrosiva do tempo com os grilhões da memória. Ela também escava vazios na sua trajetória narrativa para que o leitor neles se precipite e retarde ainda mais essa corrida do Cronos. Os enigmas da sua escrita lembram "Ano passado em Marienbad", de Alain Resnais. Naquele filme os objetos transfiguram-se numa comunicação tão mais veemente do que os diálogos quase impossíveis entre as pessoas. Margareth retorna, equilibrando-se sobre uma infinidade de ícones em que suas pegadas deixaram digitais por 60 anos de vida.

Sua escrita é semiótica. Um tipo de signo mais marcante por quase todo o texto é o da vestimenta. A primeira impressão que se tem é de que se trata de uma estilista de moda, mas não é. Sua tia é que confecciona suas roupas e as da irmã. Acontece que a descrição dessas vestes leva o leitor a tocá-las mesmo antes de serem vestidas. Outro ninho de signos semióticos, que ela nos oferta, brota da natureza que vem descrita em moldes impressionistas. É através deles que o leitor se transporta para um bucolismo real, no sertão do Ceará, ou para um convescote sonhado numa paisagem de Provença. É como se ela tivesse estado em Provença, em outra encarnação.

"Retalhos, gavetas da memória" é o título do livro de 120 páginas, da F2 Editora, de 2014. De linguagem fácil, com frases de muita sustança e tiradas de humor, o que impressiona e nos amarra são os enigmas que ela vai armando como forma de jogar com o leitor. É um jogo de esconde-esconde em que apressamos a leitura para tentarmos decifrações. O primeiro vazio que nos é dado para ser preenchido é com relação à sua cidade natal. A casa mais bonita é a de sua família, há um rio por perto, há um colégio de freiras em que ela estuda, e lá pelas tantas há a citação de um Expresso Russano. Não se tem certeza se a cidade é Russas, e isso termina por não ter importância.

Depois, no meio da narrativa de momentos da felicidade, sua adolescência exuberante é atingida pela separação de seus pais, o que acarreta uma reviravolta na sua vida. As cinco mulheres, quatro irmãs e a mãe, entram praticamente em um desamparo, que também se torna reconstruído, para comprovar que às vezes a topada ensina mais que o carinho. A mudança para a capital, que deve ser Fortaleza, mesmo não sendo citada, leva as jovens, de vida tão farta, anteriormente, a irem estudar em escola pública. A essas alturas, o leitor, baseado no senso comum, já calcula que essa garota autora não vai muito longe com seus sonhos. Ledo engano, acontece o contrário.

Margareth, ou doutora Margareth Amaral Medeiros, é médica ginecologista-obstetra das mais procuradas da cidade, que se presume ser Fortaleza. Pode ser qualquer outra capital, como também a cidade do interior em que morou, está em toda parte. É esse poder de universalização dos contextos que faz com que o leitor puxe pela imaginação nesse já citado jogo de enigmas. Esse recurso cria uma atmosfera metafórica tão intensa que a gente reconstrói com ela esses locais que não estão onde parece estarem. Eles estão nela, como mestre dessa obra, e em nós como ajudantes nesse soerguimento de cenários.

Margareth Medeiros é médica, poderia ser artista plástica, professora ou diretora de cinema. Podemos, no entanto, afirmar que uma nova faceta da sua vida agora apareceu. Ela é escritora memorialista. Faz uma ponte do passado com o presente sem cair no pieguismo. A custo, descobre-se que tem uma filha que se chama Érica. Com dificuldade maior ainda, e como leitor curioso, cheguei a concluir ser 60 anos aproximadamente sua idade. O pai era rico comerciante mas não lhe deixou herança. A mãe, uma guerreira. As freiras não lhe disseram adeus quando teve de deixar o colégio por conta da mudança de vida.

Essas encruzilhadas, que em alguns momentos fizeram pantomimas no seu caminho, foram ultrapassadas com elegância e sensibilidade. Todas lhe proporcionaram, no entanto, esse atalho que agora tenho em mãos, um livro bonito em que as trilhas construídas são reconstruções de trajetórias mais sublimes que as originais. Por isso tive que retornar às primeiras páginas para verificar mais uma vez o que diz sua irmã Janete, na apresentação. Ali ela afirma: "Além de seus papéis familiares, sociais e profissionais, os quais ela exerce com muita maestria, ela já foi maratonista, cantora, acordeonista, teatróloga, artista, cabeleireira, arquiteta, decoradora...".

Nesse mesmo retorno aos caminhos iniciais de suas memórias é importante verificar que na dedicatória, quem primeiro aparece são os filhos: Alex, Érica e Bruno. Em segundo lugar, o Messias, companheiro da caminhada. Depois vêm o genro e as noras, a mãe e as irmãs. Quanto ao pai, cujo nome não aparece no livro, há o desfecho da narrativa: afogou-se, juntamente com o filho do segundo casamento, nas águas do rio Jaguaribe. A autora foi ao velório e se lembra perfeitamente que as rosas sobre o caixão eram amarelas. Muito surreal essa imagem final do livro. Simbólica, essa imagem diz tudo do que quis dizer Margareth Amaral Medeiros, cujo texto é carregado de forma sutil, de um tom encantadoramente radical.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 02/09/14.


 

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