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Memórias de futebol

Batista de Lima


É triste constatar que a elite intelectual encara o futebol com um olhar de trivela. São poucos os escritos em torno desse esporte que mais movimenta as massas em todo o nosso Brasil. No caso do nosso Estado parece que a coisa é ainda pior. Não temos uma literatura do futebol à altura do que ocorre entre os times dos nossos campeonatos. Prova disso é que no próximo ano, 2013, contaremos com cento e dez anos em que pela primeira vez a bola rolou entre dois times na nossa terra cearense e não sabemos o que mais aconteceu.

É por isso que ao surgir entre nós qualquer trabalho de resgate em torno do futebol provoca-nos grande curiosidade. É o que tem ocorrido com esse vídeo produzido por Roberto Bonfim, que em 42 minutos nos mostra um documentário sobre a história do futebol cearense. Em parceria com Salviano Cavalcante Neto, Roberto Bonfim vasculha a oralidade futebolística "de antigos atletas, jornalistas esportivos, radialistas, memorialistas e torcedores". Além de captar depoimentos de Aírton Fontenele e Valdemar Caracas, ele também não esqueceu Alan Neto, Armando Lima Júnior, Nirez e Wilton Bezerra.

Também são enriquecedores os depoimentos de jogadores que foram ídolos de um passado não tão distante. É bom rever Erasmo de Souza, Jorge Veras, Marcos do Boi, Mirandinha, Mozart Araújo Gomes, Orlando Facó, Pacoti e Sérgio Redes. Aliás, Sérgio Redes ou Serginho Amizade, hoje professor do curso de Educação Física, da Unifor, possui uma das melhores bibliografias em torno do futebol. Possui material suficiente para elaborar até uma tese de doutoramento. Foi exatamente com ele que em certa oportunidade começamos a elaborar projeto de um Seminário sobre futebol, no ambiente universitário.

É evidente que o projeto ficou apenas no papel, mas envolveria a economia, o direito, a educação física, a psicologia e o pessoal de letras. Seria um evento multidisciplinar que contaria também com sociólogos, fisioterapeutas e historiadores, tudo com o intuito de, através de um conjunto de seminários, desembocar em um centro de estudos de futebol. Seria feito um levantamento da história de nosso futebol para a instalação de um memorial que contemplasse todos os times, atletas e dirigentes. Também haveria orientação de atletas e uma entidade de apoio a antigos jogadores necessitados. Afinal, muitos levam nos tempos áureos, vida dissoluta, depois entram em decadência.

O documentário de Roberto Bonfim é um estímulo para se pensar e repensar fatos desse esporte tão empolgante. No seu trabalho há momentos hilários, até folclóricos em torno do jogador Sapenha, mas há depoimentos pungentes como o que é feito por Mozart, grande atleta do nosso futebol, já nos últimos momentos da vida. É evidente que o tempo do vídeo é curto para contemplar tanta riqueza histórica que não conhecemos. Gostaria muito de ter visto Mauro Calixto, Edmar, Coca Cola, Gildo, Luciano Frota, Lulinha e muitos outros com muito para contar. Basta a história trágica do jogador Idalino para se ter matéria até para um longa-metragem.

Idalino veio do futebol carioca para o time do Ceará no final da década de 1940. Aqui virou ídolo da torcida, fazia muitos gols e ganhava bastante dinheiro. Chegou a possuir um Nash II, carro importado, talvez o único que existia na cidade. Comprara o veículo a dois empresários paraibanos. Devido a sua vida de muitas farras e gastos com mulheres, chegou a atrasar o pagamento do carro. Os dois jovens empresários vieram da Paraíba cobrar-lhe o atrasado. Foi então que ele em conluio com uma prostituta assassinou o primeiro empresário que o procurou. O corpo foi enterrado nas dunas da Barra do Ceará. Logo em seguida o outro cobrador que o procurou teve a mesma sorte e foi enterrado junto ao corpo do companheiro.

Dias se passaram e os familiares paraibanos aportaram em Fortaleza à procura dos dois rapazes, inclusive um já estava noivo e de casamento marcado. Aqui nada encontraram. Foi então que o chefe de segurança da época, João Arruda, empenhou-se na busca e através da prostituta chegou a elucidar o crime e prender Idalino, que foi condenado a muitos anos de prisão. Cumpriu pena na cadeia pública, sempre protegido por presos torcedores alvinegros. No dia em que foi solto, embarcou de avião para o Rio de Janeiro. Já no avião encontrou-se com um torcedor que alegou ser seu fã e que o convidou para no sábado seguinte participar de uma tertúlia em sua casa. No dia fatídico, Idalino foi assassinado no percurso de sua residência para a fictícia casa do festejo.

Essa história e muitos outros episódios de nosso futebol ainda são desconhecidos do grande público. Ninguém veio a público para apresentar levantamento de grande número de jogadores de nosso futebol que encerraram seus dias de vida prematuramente, vítimas de hepatite. É muita coincidência que dezenas deles tenham morrido na meia idade com uma mesma doença. Depois há o fato de que nenhuma entidade se preocupa em prestar orientação para muitos desses ídolos que muitas vezes do dia para a noite caem no ostracismo e enveredam pelo mundo do vício. Essas questões vêm à tona a partir do momento em que se assiste ao documentário de Roberto Bonfim. É bom saber que o valor de uma obra está muito mais naquilo que sugere do que no que diz explicitamente.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 14/08/12.


 

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