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Memorial de Assis Holanda


Batista de Lima


O interesse pelas memórias de Raimundo de Assis Holanda é decorrente do fato de ser, esse cidadão, ex-seminarista, professor e filho de Pindoretama, região enfeitada por verdejantes canaviais e adocicada por fumegantes engenhos de rapadura. Nasceu naquela localidade em outubro de 1942, um ano de seca no Ceará e de recrudescimento da Segunda Guerra Mundial, marcado por incertezas no mundo todo. O pai era um misto de almocreve e tangerino, tendo evoluído com o tempo para proprietário de caminhão no transporte da produção do lugar. Nesse panorama, Assis Holanda surgiu vocacionado para o magistério, mas com chamamento inicial para os mistérios da religião.

Ingressou, portanto, ainda imberbe, no Seminário da Prainha, vetusta casa de acolhimento para centenas de vocações sacerdotais do Ceará. Portava ainda 14 anos de idade quando o misto do Aluízio Estevão o despejou, com mais três primos, naquela casa religiosa, com o firme propósito de um dia ser padre. Ia deixando para trás os folguedos da cidadezinha com seus jogos de bola de meia, o rolimã, o galamarte, as caçadas de passarinhos e os jogos de pião. Agora era vestir a batina, estudar e rezar. Ao ultrapassar os umbrais daqueles sagrados pórticos de tão sacrossanta casa, o mundo era outro: disciplina, oração e livros viriam mudar sua vida e redirecionar seus sonhos.

Antes do seminário, no entanto, Holanda já havia feito seus estudos iniciais na sua Pindoretama. A Baixinha, como era chamada Pindoretama, fica a 40 quilômetros de Fortaleza e mudou de nome para Palmares, antes de virar Pindoretama, que significa terra das palmeiras. Ali só era possível, à época, fazer os estudos iniciais para a trajetória dos estudantes. Foi por isso que, aos sete anos, o nosso Raimundo foi matriculado na escola de Oton Otoni Gomes. Deparou-se logo com a "Cartilha do Povo", de Lourenço Filho, que mesmo estando no livro que era um "educador cearense", é bom que se saiba que mesmo tendo estado aqui não era nascido no Ceará. Da escola de seu Otoni, evoluiu para a de seu Lindor, Clarimundo Silva Porto. Em seguida, veio o Seminário.

Antes de entrar no Seminário, tinha que preparar todo o enxoval: "12 pares de lenço, 12 de meias, dois pijamas, dois lençóis, duas fronhas, um par de chinelos, um par de sapatos, cuecas, calças, camisas, creme dental, sabonete, duas toalhas de banho, duas de rosto, escova de dentes e pente". Além disso tudo, ainda tinha que levar duas batinas para uso diário e uma para as solenidades, que no caso fora presente do vigário de Cascavel. Para um garoto que vivia jogando bola, caçando de baladeira galos-de-campina, sanhaçus, graúnas, canários e azulões entre coqueiros, cajueiros e mangueiras, era muita mudança.

Entrar no Seminário era deixar para trás os banhos nos riachos e as brincadeiras do maneiro-pau. Era perder as exibições do Circo da Jandira, com palhaços e malabaristas. O ponta direita nos rachas de Pindoretama, organizados por Chico do Zé Porfírio, agora tinha horário para tudo, principalmente para estudar e rezar. Era agora muita saudade das festas da Padroeira, em dezembro, com quermesse, radiadora e procissão. Toda aquela ozáfama das festas ficou gravada na memória do antigo menino que mesmo antes de entrar no Seminário, já ajudava ao padre na igreja.

Entre essas memórias está a lembrança daqueles tipos característicos que circulavam pelo povoado. Eram tipos populares, doidivanas, às vezes provocando risos; outras, metendo medo. Agostinho Doido não era tão doido, mas também não tinha o juízo confiável. Manuel Belo, tido como louco, alimentava também as mentes com o medo de lobisomem. Diziam que, em noite de lua cheia, bastava o escondimento da mesma por trás das nuvens e o doido se espojava no espojadores dos burros e virava bicho. "Animal peludo, queixudo, de unhas grandes, cisca as folhas secas da mangueira e parte em direção ao homem em desabalada carreira, pulando cerca de nove cintas de arame farpado". O pior é que diziam que ele tirava o fígado das crianças para comer, era o papa-fígado.

Todas essas memórias retornam ao seminário. Sete anos de claustro mudam a cabeça de qualquer um, direcionam para a vida de padre ou de bom leigo. Foi por isso que em setembro de 1963 Assis Holanda concluiu que em vez de padre era melhor ser um bom leigo. Deixou o Seminário e encetou seus estudos no Liceu do Ceará, colégio por onde passaram eminentes vultos da cultura cearense. Por esse tempo, também arranjou a primeira namorada, a conterrânea Socorro, com quem chegou a se casar em 1967. Um ano depois, em 1968, estava se formando em Letras na Universidade Federal do Ceará, sem ter direito a uma colação de grau na Concha Acústica daquela Universidade, pois naquele momento de vigor da dureza do AI-5, todos os concludentes da UFC foram privados dessa festividade pública.

Assis Holanda iniciou-se no magistério no próprio Liceu. O antigo aluno agora era professor. Sua carreira vertiginosa no magistério foi produto de sua capacidade pedagógica e de seu aprendizado da Língua. Nessa sua trajetória, cruzamos nossos caminhos no Colégio General Osório, na Universidade de Fortaleza e posteriormente na Universidade Estadual do Ceará. Sempre tive o professor Holanda como referencial para dirimir minhas dúvidas nas instituições de ensino em que trabalhamos conjuntamente.

Seu grande amigo desde os tempos e estudo é o professor Dias da Silva, o prefaciador do seu livro. Esse "Gente, nomes, lugares e outras lembranças" não é apenas um livro de memórias, mas também um testemunho de uma personalidade que na sua simplicidade, projetou sua trajetória de vida, e com sua Socorro dá um exemplo às novas gerações.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 19/08/14.


 

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