top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Melágua

Batista de Lima



No primeiro ano sem moagem, aquele povo padeceu de desgosto. Era ali, na ribanceira de seus dias, que se batiam as caldeiras e o canavial pesadelava com facões. Dessa vez o silêncio altaneirava-se pelo sítio. Capinventava uma grande saudade tibornada. Os homens rabiscavam sinas pelo chão. As mulheres penteavam as tranças das crianças, ruminando saudades adocicadas.

Era um agosto todo feito para términos. Entretanto ainda havia o luar luando histórias calçadadas com gosto de café pilado, mas nesse dia, a noite lacrimou neblina e fez feriado lunar. Meu avô conseguiu arrastar os pés pesados de décadas até a sala onde na cadeira de desbalanço, tentou respostas ao coçar a brancura de seus cabelos.

Nesse dia já virado noite, as pessoas foram chegando pesadas de tristeza e com os olhos cavando a terra. Todos pareciam sentinelar um morto ainda quente. Queriam ouvir o ancião entoar as incelências ao engenho. Afinal, não tinham como fornalhar aquele agosto.

Os que ali chegavam, vinham desacompanhados de palavras, mas seus silêncios estridentavam lamúrias. Algum "boa noite" exclamado vinha sem tripa de salgado. Era o começo do fim dos tempos para aquela gente sarrabulha. Tudo isso desaconteceu com meu avô morto há dez anos. Mas é porque aconteceres clareiam anoiteceres. E quando ele viajou emburanado, o engenho confabulou com o açude promessas de mel e água para a orfandade ficada.

Por ali a noite ficou mais treva. E a escuridão contaminou o fundo do açude que mais afundado ficou. Pois foi exatamente naquelas profundezas sem fim que as histórias se entrincheiraram contra a volúpia do tempo. São histórias que a noite deixou de contar, proibida pelo sono. Ali meu avô, de tarrafa em punho, colheu peixes narradores de epopeias que lá se escondem feito traíras e piaus.

Ali as histórias se abrigaram quando o engenho fechou e o canavial faleceu. Naquelas águas represadas, estão inscritos os corpos que nelas se banharam em nudez entre mergulhos e nados. Aquela maternal parede mantém no seu colo, enorme lágrima porque por aqueles ermos, açude é choro de Deus.

Assim, quando o engenho se fechou, as histórias se abriram em flor. Calaram as moendas, mas não controlaram a língua frouxa das palavras. Foram elas nascidas e pendoadas na bagaceira da saudade, e fizeram ranger as moendas no seu desfuncionamento. O açude então segurou a alça desse caixão e as horas herdeiras do tempo mergulharam nuinhas nas suas águas, como antigas lavadeiras desapressadas.

Por isso que ainda hoje remiramos aquelas águas tristes, pois guardiãs zelosas, elas espanam o pó dos dias que se acumulam nas histórias avoengas. Ali nas profundezas, o engenho ruge e a vaca muge na ferrugem das moendas. Naquelas águas, os penitentes cantam e nossos antigos grudes continuam sendo lavados com barras de sabão da terra.

No espelho daquelas águas, ainda se veem meninos marrequeando cangapés. Veem-se moças ternurando sonhos e velhos bebendo histórias em goles de solidão. São histórias que riacham dentro da gente, piracemando traíras e corrós. Entre elas tem aquela do boi que se suicidou e da donzela sonhadora que se foi montada em amores fugitivos. Pescarias latejantes levam a gente ao porão das águas, mostrando que, muito mais fundo dali, ressonam causos que os tempos soterraram. Quando me banho naquelas águas, sinto na gravidez do açude, certas nascenças por virem.

Houve uma certa vez em que ele secou de todo. Parecia uma boca desdentada de um morto insepulto. Mas, por baixo daquela lama seca, muita narrativa estava grávida de décadas. Bastou a primeira chuva para elas florarem puras.

Por isso que, quando me vazo de lendas e porquês, é ali naquela lágrima que pesco certas respostas que o mundo do seco me esconde. Ali encontro acolhimento contra desatinos que me tentam. Basta eu ficar meio nenhum para ir me tudificar nas entranhas daqueles dentros. Ali não florescem longes e os breves estiram os braços ofertando eternidades.

Aquele açude é um livro porta-voz da natureza, contador de suas histórias e doutras da redondeza. Prova disso é aquela, narrada pela boca penteada de pescadores de tarrafa, landuá e quixó, chegados num dia de pesca a convite do dono da terra. Disseram que num açude, parente do dali posto à espera, o rapaz Manelantônio, depois de comer pirão quente sobremesado de moca, tibungou em águas escuras do açude do pé de serra. Dali não saiu mais, estoporado ficado, no fundo das águas lodosas. Muitos homens a nado mergulharam sem ver o corpo do moço afoito. Foi aí que resolveram chamar Maria Raimunda feiticeira da Fuega.

Pouco tempo depois, Maria Raimunda chegou, com sua mucuta de teréns, acompanhada nos calços, por sete cachorros pretos. A fumaça de seu cachimbo, que havia chegado antes, já dissera a quem estava ali que uma cabaça seca tinha de ser arranjada para os feitos de Maria. Cortada ao meio a cabaça, na parte mais funda foi colocada e acesa a vela preta trazida, feita com muito bendito e cera extraída de cupira.

A cabaça posta na água foi sendo levada sozinha pelo vento tornado brisa, e a certa altura das águas parou sua navegação. Ali homens de muito fôlego mergulharam nas funduras e delas pescaram Manelantônio que nunca mais tomou café e muito menos comeu pirão.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 20/06/2017.


 

3 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page