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Medo que te quero medo

Batista de Lima


O medo é uma herança difícil de ser apagada. Ele é grudento e nos acompanha pela vida em permanente conflito com a coragem. Somos educados com medos para criarmos coragem. Parece paradoxal. Acontece, no entanto, que ao nos falarem de alma penada, o que é assombroso, dão-nos ensinamentos de coragem para dialogarmos quando ela aparecer. "Quem pode mais que Deus?" Essa é a pergunta que nos ensinam a fazer. Ao mesmo tempo nos dizem que a alma vai responder: "Ninguém". E aí vem todo um diálogo para conversarmos e tentar salvar aquela coitada.

Depois vêm os Mandamentos da Lei de Deus cuja palavra mais presente é o "não". Isso sem contar as pregações do vigário com as ameaças do inferno e do purgatório. Lembro-me bem que, no tempo de Seminário, os padres alemães colocaram por várias semanas, nos corredores do internato, quadros ilustrativos do inferno de Dante. Eram ilustrações dos trechos mais horripilantes da Divina Comédia. Depois ficávamos tendo pesadelos em noites mal dormidas. Esses medos acompanham cada um pelo resto dos dias. Até parece que educar é incutir temores nas mentes jovens. Quem não estudar não tem futuro.

Depois de incutirem muitos medos na gente vem a cobrança para que não tenhamos medo. Ainda bem que tenho constatado que os medrosos têm durado mais que os corajosos. Até parece que a coragem encurta a vida. Os valentões, os corajosos que mitificamos se foram e nós ficamos contando suas histórias. Podiam ter durado mais, mas foram vítimas da coragem. Por isso tenho pensado nas vantagens do cultivo do medo. Afinal, heróis só existem se forem marcados por excesso de coragem. Não há o herói do medo, aquele que chegou à glória por ser medroso. Até parece que o medo é uma plantinha rabugenta que precisa ser arrancada do jardim da vida.

O medo muda de feição a cada fase da vida e a cada momento da história. Os medos do tempo de criança começam com as cantigas de ninar que falam até de boi da cara preta que rima com careta. Aí começa também o preconceito, que é um medo doentio, que procura sombras, trevas e palavras travadas, para estratificar pessoas. Aliás, há palavras que se fecham nas vogais para reter medos. "Forca" jamais teria vogal aberta tônica. Seria uma "Forca" que não enforcaria ninguém. A própria palavra "Medo" seria inofensiva se o "e" fosse uma vogal aberta. Nada mais horroroso que se pronunciar: "Tenho horror de ti horrendo Henrique", como cita Jakobson.

Além desses medos particulares há os medos gerais, aqueles que assombram todas as pessoas. O medo da guerra atômica à época da Guerra Fria é um exemplo. A gente ia dormir sem saber se acordava. Depois há o medo das catástrofes, dos terremotos, dos tsunamis, tudo culminando com o fim do mundo que vez por outra tem seu dia marcado para acontecer. Diziam que o mundo ia se acabar em 1960. Seriam quarenta dias de dilúvio, pior do que na época de Noé. O mundo não se acabou para alívio dos medrosos, e frustração dos profetas e pregadores. Isso tudo sem contar o medo da seca. Diziam que haveria sete anos de seca e que tudo morreria. Houve foi chuva muita e o Orós arrombou-se.

Segundo Mia Couto, o medo foi um dos seus primeiros mestres. Acontece que esse escritor moçambicano conclui afirmando que ao mesmo tempo foi, o medo, um mestre que o levou a desaprender. E é mesmo. Às vezes desaprendemos por nos envolver com medos sem sentido. A África é um continente que cultiva muitos medos e isso pode também ser responsável por parte de seus problemas. Acontece que culturalmente aquele continente tem uma riqueza exótica, ritualística, forjada a partir de medos cultivados. Daí que podemos encontrar, diferentemente do que pensa Mia Couto, algumas vantagens de se cultivarem medos. A arte tem valorizado medos.

A literatura fantástica tem se estruturado sobre medos. O fantástico, evoluído principalmente da Alemanha, tem alguma ligação com sua formação antropológica. É um povo recluso entre quatro paredes por conta de um clima que contribui para isso. A reclusão é propícia ao surgimento de fantasmas, de luzes que bruxuleiam e formam figuras monstruosas. Os vampiros não se dão com amplidões, com claridades.

Por isso que nosso sol nordestino é um verdadeiro espanta fantasmas. Nosso viver em amplidões clareadas elimina medos de sombras, que só perduram enquanto dormimos.

Mesmo assim não quero dissipar a essência de todos os meus medos. Quero deles tirar algum proveito, feito tiborna de moagem que diziam não prestar para nada, mas dela os porcos se alimentavam e havia até quem a transformasse em rapadura para ração bovina. Tenho sentido que perdi alguns medos de pequeno e adquiri outros feito grande, dos quais não me livrei ainda. São medos de doenças, pois feito Quintana, não tenho medo da morte, mas me amedronta o morrer. Não tenho medo da velhice pois imagino que crepuscularei ouvindo estrelas, domando relâmpagos e educando as formigas que em procissão carpirem minha glicose.

Se esses medos teimarem por se alojarem no meu por dentro, sairei por aí claricespectorando-os em páginas de virulências. E aí, saiam da frente os responsáveis por introjetar em mim esse medo de dobrar esquinas, esse cuidado de não desagradar, esse respeito aos bem vestidos. Cantarei loas aos que me abriram portas e espantaram meus morcegos, mas esganarei aqueles que amarraram os pés da minha alma e me colocaram frente a paredes sem portas. Por isso que algum medo ainda guardo, apenas para precisões maiores, afinal, em tempos de seca, qualquer piaba é baleia e eu, graças a Deus, ainda estou em tempos de piracema; graças a ti, meu querido medo que te quero medo.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 31/01/12.


 

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