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Matuto do Ceará e Caboclo do Pará

Batista de Lima



José Carvalho é cratense, mas viveu um bom tempo no Pará e é considerado um herói da Revolução Acreana. Participou da Padaria Espiritual, tendo como codinome "Cariri Braúna". A partir de 1930 voltou para o Ceará. Pesquisador do folclore, escreveu livros, tendo como destaque "O matuto cearense e o caboclo do Pará". A primeira edição foi publicada em 1930 pelas Oficinas Gráficas do Jornal de Belém. A segunda veio a lume em 1973 pela Imprensa Universitária da UFC., em Fortaleza. O livro é oferecido ao folclorista Luís da Câmara Cascudo.

Tanto Câmara Cascudo como Leonardo Mota, folcloristas famosos, confessavam a influência recebida do nosso José Carvalho. Isso porque esse cratense, um pouco anterior a eles, escreveu uma das mais destacadas obras do folclore nacional, que é esse libelo comparativo entre os dois tipos nacionais mais curiosos: o matuto do Ceará e o caboclo do Pará. Para tanto, ele embrenhou-se pelos nossos sertões caririenses, mas principalmente pelo interior do Pará, fazendo pesquisas para bem caracterizar esses dois tipos brasileiros. O nosso matuto do Ceará é "mais complexo, mais multiforme, mais variado", no dizer do professor Walter Cantídio, prefaciador da 2ª edição.

O caboclo amazonense é pintado como mais simples, menos complicado e mais primitivo. E por ser bem mais primitivo, toda sua cultura vem recheada de crendices, lendas e mitos, e seu conhecimento é quase todo fincado em pressupostos do senso comum. Diante pois desse panorama que envolve o caboclo, o pesquisador constatou que entre eles não há casos de loucura, não há entre os mais velhos, casos de cabelo branco, quase não há casos de cegueira e os homicídios são mínimos. Não é o que acontece com o matuto cearense, geralmente lutando com o gado, com a rês de que tira leite, mas também mata e esfola para consumo. Talvez seja essa também uma das causas de tantos crimes no Ceará, inclusive de faca.

Segundo José Carvalho, "O caboclo amazonense é manso e bom por índole (?) não sabe o que é seca e o que é fome (?) não se atrapalha, não se zanga, não se avexa, não se agunia". Assim é que se constata que enquanto o cearense vinga-se com uma facada, o caboclo responde com um sorriso de desdém a qualquer desfeita. O primeiro afronta o perigo de frente, o segundo, contorna-o. Um é impetuoso, o outro é calmo. Também com relação à religião, o cearense é mais rezador, o caboclo é mais supersticioso. Essas diferenças encontradas pelo autor culminam também com o resultado da contaminação do colonizador que é mais presente entre os matutos do Ceará e que não tem sido tão bem assimilada pelo caboclo do Pará.

Outra constatação de José Carvalho é que não há na Amazônia o improvisador, o repentista, o tocador de viola. Enquanto que nos sertões do Nordeste ele encontra cantadores célebres, no seu tempo, como: "Ignácio da Catingueira, Rio Preto, Romano, Manoel do Ó, Bernarda e José de Matos, o maior improvisador cearense, filho do Crato". José de Matos, que ficou conhecido como Zé de Matos, é tão apreciado pelo autor que todo um capítulo do livro, o penúltimo, é dedicado a esse poeta. É tanto que ele o define como "o mais extraordinário poeta improvisador, matuto e analfabeto, que os sertões cearenses já produziram".

José de Matos aparece no livro como símbolo do matuto cearense. Improvisador, cantador, cachaceiro-mor do Cariri, mestre de rapadura nos engenhos da região, era um "tipo meião, cheio, tórax larguíssimo, cara larga, venta chata, cabeça bem proporcionada, olhos pequenos, vivíssimos e voz cheia, retumbante". Trabalhou em muitos engenhos caririenses, bebeu em tudo que era birosca e frequentou todos os prostíbulos por onde passava. Sua ironia satírica amedrontava seus interlocutores e até nas conversas normais falava rimando improvisadamente.

Um momento também importante do livro ocorre quando José Carvalho utiliza seis páginas para elucidar a origem do nome Acre. Afinal, como participante da Revolução Acreana, ele também estudou aquela terra e era sabedor do quanto os cearenses ali presentes sofreram na luta contra a Bolívia, sem ajuda do governo federal que só se interessou pela conquista depois que ela se efetivou. Por lá ele descobriu que o rio Purus era chamado pelos índios Apurinas de Iquiri ou Aquiri. Daí que Acre é simplesmente uma transformação de Aquiri. E tudo começou com um cearense, João Gabriel, que escrevia sem cuidado Aquiri nos sacos de mercadorias exportadas.

O momento culminante, no entanto, ocorre quando ele trata do matuto símbolo do Ceará, Antônio Gonçalves da Silva, que aos 20 anos de idade, chega ao Pará já com o epíteto de Patativa. Ele chega ao Norte como Antônio Patativa, o que derruba a tese de que foi José Carvalho que deu esse apelido ao nosso maior poeta popular do Cariri. Afinal é o próprio Carvalho quem afirma que o bardo por lá chegou com esse nome pelas mãos do comerciante José Montoril. Pois esse Patativa passou mais de dois meses naquela região, e tão jovem ainda, duelou com sua viola contra os melhores cantadores que por lá estavam e venceu a todos, ficando famoso.

São essas narrativas e algumas descrições da compleição física de seus personagens reais que fazem com que José Carvalho se torne respeitado e admirado pelos pesquisadores de folclore que lhe sucederam. Suas pesquisas postas nesse livro nos instigam, inclusive, a ler outros pesquisadores que em seguida vasculharam a Amazônia, como Lévi-Straus nos seus "A oleira ciumenta" e "Tristes trópicos". Ainda há muito o que se pesquisar na Amazônia, mas não resta dúvida de que José Carvalho é um dos pioneiros nessa jornada.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 13/09/2016.


 

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