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Mara Nóbrega e o mundo de Silas

Batista de Lima

Silas formou-se em Agronomia. Sua vivência, na infância, na fazenda Oiticica, foi a principal influência. Era a fazenda do seu avô paterno. Ali, toda a cultura sertaneja estava posta no seu dia a dia de neto que curtia férias e feriados prolongados. Além do avô, seu anfitrião preferido era o serviçal Tião. Os dois viviam os acontecimentos da fazenda, principalmente o cuidado com o gado. Outros personagens ali também mourejavam. É o caso de Damiana e Hermínia, inclusive a cachorra "Sovela", que passa o tempo todo por um processo de humanização, ao feitio da cachorra "Baleia", de "Vidas Secas", de Graciliano Ramos.

Esse panorama é que dá respaldo ao romance de Mara Nóbrega. Publicado pela Chiado Editora, de Portugal, com o título de "Oiticica", são 223 páginas com edição neste 2015. Oiticica é o nome da fazenda em que se apoiam as memórias da infância de Silas. Daí que dois níveis da narrativa vão marcando cada passo da história, tornando-a dicotômica o tempo todo. A cidade e o sertão, o urbano e o rural com seus caracteres, a infância e a velhice, o inverno e a seca, tudo vai sendo atrelado para compor a saga de uma família de origem sertaneja que aos poucos vai se transferindo para a cidade.

Velho e doente, Silas retorna ao seu paraíso perdido, rememorando uma infância marcada pelo bucolismo. Os capítulos do livro vão se intercalando. Quando um se volta para a saudável fazenda da infância, o seguinte já retorna para um presente real da velhice na cidade em que o câncer lhe corrói o que resta de vida. O sertão simboliza a saúde, a alegria e a paz de espírito. A cidade grande é o cenário da destruição física, da desesperança. O eros e o tânatos se intercalam o tempo todo. É tanto que as poucas cenas amorosas, de leves conotações eróticas, ocorrem no cenário sertanejo, em que a adolescência se revigora.

Mara Nóbrega, ao longo da narrativa, vai demonstrando um profundo conhecimento das coisas do sertão. A culinária nordestina surge como ponto principal dos seus conhecimentos. A mesa farta traz os produtos da roça, desde os derivados do milho aos produtos do leite. O cuscuz e a coalhada, os queijos e o milho cozido, a carne assada e a manteiga, tudo é produzido na fazenda avoenga. Da cozinha comandada por Hermínia, respaldada por Damiana, evoluem os cheiros que invadem a casa de moradia e povoam a memória de Silas na sua convalescência no ambiente urbano.

Silas foi sempre um idealista. Por isso que seu sonho sempre fora transformar a fazenda Oiticica em um celeiro de produções agrícolas. Para isso era premente a necessidade de resolver a questão da água. Com esse propósito, ele e um grupo de colegas elaboraram um projeto de irrigação e o encaminharam para a Capital Federal para aprovação. Só com o fim da sua vida foi que chegou a notícia da aprovação de seu pleito. Foi por esse motivo que ao ingressar na universidade, seu curso escolhido fora a Agronomia. Lamentavelmente o curso não resolveu o problema da fazenda.

A falta da água, por conta das secas, era motivo, no final, do atraso da fazenda, que não chegou a modernizar-se. Tião representa a manutenção de práticas tradicionais do ambiente rural. Seus saberes eram baseados no senso comum. Por isso que juntamente com Silas, cria uma nova dicotomia, tendo em vista que este, ao enveredar pela Agronomia, representa o conhecimento científico que infelizmente não foi utilizado na redireção da fazenda. Talvez seja o personagem Ernesto que chegue a utilizar conhecimentos modernos, mas isso na terapia que executa através de Silas.

O destaque principal do livro é portanto a memória. "Oiticica" é o livro de Silas, por ser o livro de sua memória. Para isso se efetivar, foi necessário que Mara Nóbrega, com seu conhecimento das coisas do sertão, revelasse toda uma cultura que vigorou nas fazendas sertanejas. A autora demonstra vasto conhecimento da fauna, da flora e da culinária sertanejas. Vai da cozinha ao campo, do curral ao queijo, passando pela manteiga, com a mesma desenvoltura. É impressionante sua intimidade com sabores e saberes das coisas do interior.

Mara Nóbrega inclui no seu texto tantos signos e mitos nordestinos que até Lampião e Maria Bonita pontificam em um episódio verossímil. Há uma faca de Lampião, que aparece no texto, que segura a curiosidade do leitor por alguns capítulos. A faca encontrada na fazenda, perdida pelo rei do cangaço, era presente de Maria Bonita. Por isso a inscrição na lâmina de prata: "Para Lampião. De sua Maria Bonita. Por ocasião do nascimento de Dita. 1932."

Por isso que o livro fica atraente para a leitura. Afinal são muitas vertentes por onde a imaginação do leitor pode trafegar. É essa abertura de veredas para tráfego do leitor, que faz desse romance de Mara Nóbrega, uma narrativa agradável, e comprova sua vocação de exímia narradora.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 12/05/15.


 

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