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Manequins preferem noites

Batista de Lima


Os rituais preferem as noites, os manequins também. Um luar gris ajuda bastante. Se for ambiente fechado, uma luz esmaecida é bom. Rituais não gostam de excessos de claridade. A arte é mais noturna que diurna. Por isso que Bachelard nomeia de homem noturno aquele que vive no mundo das artes. O músico, o compositor, o intérprete são homens noturnos. O narrador também trabalha noturnidades. Por isso que se torna uma bela viagem, ler um contista que antes de tudo é compositor, instrumentista e cantor.

Esse privilégio quem possui é Eugênio Leandro. Mesmo tendo nascido em Fortaleza, criou-se em Limoeiro do Norte, terra de intelectuais. Naquela cidade cearense, do Vale do Jaguaribe, aprendeu violão, estudou desenho, escultura e entalhe. Trabalhou em teatro, rádio e jornal. Tocou em bailes dançantes, cantou reisado e frequentou circos mambembes. Depois desse aprendizado, retornou a Fortaleza onde se enfronhou nos principais grupos musicais e literários da capital, tendo se destacado como um dos mais atuantes componentes do grupo Siriará de literatura. Foi nesse grupo que começou a editar seus contos.

Eugênio Leandro, entretanto, frequentou mais os domínios da música, deixando a literatura enciumada. Até parecia que seu coração se definira pelos encantos dos palcos musicais, pelos aplausos dos fãs, quando ele aparece com esse seu "A noite dos manequins". Essa coletânea de 18 contos, editada pela Expressão Gráfica Editora, neste 2011, privilegia rituais. São modos de lutar com palavras como se fossem pessoas a serem dirigidas numa encenação. Angelito Antônio, Teruel, Vincenta, Josiel, Bernardino e Luzia não são tão pessoas quanto as palavras em que se transformam. Pessoas são palavras, palavras são pessoas.

Esse jogo de transformação faz com que Nilto Maciel, no prefácio, detecte a análise psicológica que ocorre quando do tratamento dos personagens. O trabalho de análise pode ser feito a partir da fala de cada um. Essa fala se instaura na tensão que se estabelece entre o indivíduo e seu grupo social. É uma fala em que a palavra é reveladora da persona. Os mendigos do conto "A noite dos manequins" são tão bem trabalhados na seleção das palavras que se tornam feitos linguísticos. São muito mais construções sígnicas do que produções biológicas. Daí o conto não precisar narrar, basta descrever que já encanta. Eugênio Leandro é um escultor cujas ferramentas são palavras.

Isso pode ser muito bem observado em "Águas de Romanza". Romanza é uma menina que engana o tempo no batente do dia, observa a tarde se derreter por entre a poeira indefinida da estrada. Essa atmosfera instaura um cansaço que se enrama pelos compartimentos da tarde. É aí que aparece um personagem chamado Percival para congelar esse cansaço. Esse ritual se concretiza como uma "semana que passa como um queijo de coalho, podendo-se retalhar a quentura a facão". O calor é apalpado como um cão felpudo que dorminha debaixo de uma árvore ao meio dia. Tem ele uma quentura latejante que pulsa nos pés de cerca e serra.

Essa quentura transfigura-se nos contornos do conto "A pequena". Cada personagem medra no calor. É um calor tépido numa atmosfera ovóide onde uma ameaça de explosão só produz sensualidades. A Pequena testemunha uma relação sexual que nela se infiltra para no final aberto o leitor deduzir que a garota vai satisfazer o cliente da mãe. Pode nem ser, mas esse conto é uma sugestão permanente, alada, pulsante. É o ponto culminante do livro. É aquele momento em que o leitor esquece que está lendo Eugênio Leandro mas algo inscrito em si próprio, leitor/autor, texto/teto.

Leandro nesse conto, em "Catita" e em outros, com menos intensidade, demonstra ser conhecedor da psicologia infantil, do despertar da sexualidade e da ambientação que lhe serve de cenário, principalmente em paisagens sertanejas. Parece que a agressividade da paisagem provoca uma latência sensual em todos os viventes que sobrevivem a essa atmosfera. Até a pele do texto parece ficar tostada com a quentura do sol e o torpor das tardes. Isso sem contar uma atmosfera tépida que evolui do chão para cima como para atiçar o que as pessoas guardam um pouco além.

"A noite dos manequins" é o conto que dá nome ao livro. É o único cujo cenário é Fortaleza. É uma Fortaleza noturna, devastada pela solidão e sobrevivendo no seu centro antigo graças ao lirismo dos noctívagos mendigos. Zeabel é um deles. Sua loucura dá um suspiro de vida ao deserto urbano da madrugada. Zeabel é um pouco de vida que ainda lateja na crosta invertida que reveste o centro de Fortaleza. É, com sua loucura, a animação derradeira, a visita de saúde de uma conglomerado de prédios que regorgitam durante o dia e morrem à noite.

A escritura de Eugênio Leandro impressiona. Ele resgata personagens inexpressivos, injetando-lhes vida. Tranfigura-os como Clarice fez com Macabea. Pratica um humanismo carregado de ternura. Coloca personagens insignificantes como atores engrandecedores de suas poucas possibilidades de destaque. Além disso utiliza um discurso em que o signo verbal é trabalhado ritualisticamente como os próprios personagens. Personagens e palavras sangram pela mesma ferida.


jbatista@unifor.br

13/12/11.

 

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