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Literatura e Psicanálise

Batista de Lima



A fala mais sincera de uma época está adormecida na estrutura profunda de suas obras literárias. Acontece que, para o leitor chegar a essas camadas, é necessário muito fôlego para o mergulho. Daí que teóricos da literatura estão a oxigenar esse pulmão através do transitar dos caminhos devassadores da psicanálise. Os impasses criados pela sisudez da modernidade fazem com que os saberes mais variados se deem as mãos, como forma de, diante do caos que se descortina no horizonte, encontrar atalhos para a salvação do humano. O namoro, pois, da literatura com a psicanálise não é de hoje, mas o noivado é de agora. Por isso que literatos estão de mão estirada para a psicanálise, e psicanalistas estão vasculhando literariedades. A literatura é essa fala que a psicanálise ausculta por saber que nela está o fulcro explicativo dos impasses que enfrentamos. Por isso que é estimulante encontrar uma obra que faça a ponte entre os dois extremos dessa travessia que cada vez mais se encurta entre literatura e psicanálise. Nesse cenário, a obra Freud e a literatura: destinos de uma travessia é indispensável para se entender porque ´a literatura capta a densidade do mundo em sua brutalidade e singeleza´. Daí ser ela, matéria valiosíssima para entender o mal-estar dessa civilização entre os achaques que nos vitimam. Leônia Cavalcante Teixeira, a autora, foi fundo nessa prospecção para auscultar o latejar do sentimento do mundo que está impresso em nossos corações e mentes. Essa dicotomia é diluída no momento em que a autora entrelaça saberes para demonstrar que o mundo metonímico é o primeiro sinal de que bem ali por perto está o recanto sagrado onde a metáfora faz seu ninho. Esse seu livro tem o mérito de abrandar a tensão entre as dicotomias mais variadas a ponto de conseguir o curvar-se do apolíneo e a prontidão do dionisíaco. A relação entre literatura e psicanálise é como a de duas irmãs que se amam mas não se conhecem o suficiente para compartilhar seus mistérios. Nesse ponto de contato entre as duas, é onde a doutora Leônia Cavalcante Teixeira instala seus artifícios de escavação em busca desse pré-sal que existe nos subterrâneos da subjetividade. Logo na apresentação, o professor Carlos Alberto Plastino invoca dizeres de Freud sobre essa relação quando o criador da psicanálise chega a afirmar que os poetas são ´capazes de extrair de seus próprios sentimentos, intelecções profundas´. O apresentador é conhecedor seguro da obra freudiana e ao mesmo tempo do texto da professora Leônia Cavalcante, afinal, como professor do doutorado cursado pela autora, foi também o orientador de sua tese de conclusão do curso, de onde, após condensação devida, surgiu esse livro em questão. É um livro bem produzido pela editora As Musas, neste 2009, em que, ao longo de 192 páginas, é possível verificar o quanto a clínica e a literatura são fontes de saberes e interrogações. Por parte da literatura, não se tem dúvida de que seu discurso é um plantio de enigmas, o que se constitui campo propício para a colheita de saberes por parte da psicanálise. Por outro lado, a psicanálise, como afirma a autora, vai ´buscar, no literário, intuições, alusões, justificativas e confirmações´ para contribuir no seu arcabouço conceitual. A intuição, como fundamental para os poetas, serviu de guia para o Freud-escritor, e um dos canais foi o estilo, que caracteriza cada criador / escritor. O estilo é uma fala. O estilo é o homem. É ele a porta que se abre para o ingresso na subjetividade pessoal. Conforme verificou a autora, Freud foi leitor de clássicos da literatura, onde, entre muitos, se destacavam Goethe, Shakespeare, Milton, Scott, Charles Dickens, T.S. Elliot, Miguel de Cervantes, Calderon de La Barca, Flaubert, Balzac e Zola. Curioso é que ele sempre se mostrou prudente com relação aos contemporâneos seus como Joyce, Kafka e Proust, e principalmente Breton. É exatamente com relação a este, arcano do surrealismo, que não se entende porque Freud guardou certa distância. Ora, sabe-se que o surrealismo caracteriza-se pelo valor que atribui à imaginação, pela ilogicidade, pela valorização do inconsciente. Portanto, campo riquíssimo para a investigação psicanalítica galgada mais por Lacan do que por Freud no seu tempo. Outra curiosidade sobre Freud e suas leituras diz respeito ao seu gosto pelos textos de Miguel de Cervantes. Acontece que sua escolha recaiu principalmente sobre a série cervantina Novelas exemplares, com preferência para O diálogo dos cães. Ora, o Dom Quixote, de Cervantes, sua obra máxima, contém uma verdadeira apologia ao sonho. Tão forte é esse aspecto que o cavaleiro da triste figura é taxado de louco por seus circunstantes, e sua pouca lucidez está presente não em si mas no seu escudeiro Sancho Pança. Os dois personagens podem ser tratados como um só, onde transitam sonhos intercalados por racionalidades. Por que Freud não optou pelo Dom Quixote? São essas questões que vão surgindo ao longo do texto da professora Leônia Cavalcante, que prendem o leitor em um diálogo não apenas com a autora mas também com o próprio Freud. É como se ao lermos o texto, transportássemos para a sua escritura e indo mais além, confrontássemos nossas dúvidas com o próprio criador da psicanálise. Como se estivéssemos no seu divã, a não nos revelarmos, mas tentando trocar de lugar com o próprio psicanalista. Daí que as intertextualidades com relação aos seus interlocutores são perfeitamente compreensíveis, o que não se repete quando elas se referem a sua própria produção. Será uma confirmação, ou uma mudança de ponto de vista? É bom no entanto nunca perder de vista que Freud sempre preferiu o gênero narrativo. E nas narrativas prospectou, preferencialmente, a manifestação estilística de quem escrevia. Ora, isso significa que seu objetivo era a fala do autor como alguém posto no seu divã. Alguém transgressor, rebelde diante da palavra desgastada. O escritor é alguém que opera uma verdadeira ´esfoladura´ do código linguístico, no dizer de Barthes. Portanto, esse mundo do novo, soerguido sobre escombros da palavra fragilizada, reaparece carregado de uma pluralidade de vidas, uma verdadeira legião estrangeira, possível de colheita no texto literário, que aos olhos do psicanalista é matéria prima, e ao mesmo tempo encurta a distância que existe nessa travessia entre psicanálise e literatura.

 

09/06/2009.

 

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