top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Lembranças do reino da Barra

Batista de Lima


A superfície do reino da Barra pouco passa de um quilômetro quadrado de extensão. Acontece que nos relevos do coração suas dimensões se tornam imensuráveis. Essa vastidão íntima é possessão dos que lá nasceram. Dias da Silva é um dos nativos daquele logradouro. Lá nasceu, cresceu, adolesceu e carreou para os armazéns da memória cargas de imagens que as retinas captaram. Agora ele as põe em livro a que deu o nome de "Lembranças miúdas", da Coleção Binóculo, editado pela RDS Gráfica e Editora, a mesma entidade que publicou seus livros anteriores.

Ali, naquele universo ancestral, encravado no município de Lavras da Mangabeira, Cândido Salvador Dias, ou Candinho da Barra, como era conhecido, avô do memorialista, estruturou o clã, alicerçado em princípios morais e religiosos. Devoto de São Sebastião, o patriarca conseguiu que dos três filhos, um chegasse a padre (Padre Raimundo Nonato Dias). Era um ambiente familiar tão harmônico, que Maria José de Lima, a avó do autor, costumava profeticamente declarar: "Tenho uma grande saudade do mundo". Era que sabiamente ela concluía que aquela felicidade, como as coisas da vida, tinha sua culminância mas teria um dia o seu declínio, ou como dizia Saramago: "Tudo que tem durado muito, mais próximo está de deixar de durar".

Hoje o sítio Barra está decadente, as antigas casas estioladas, os caminhos invadidos pelo mato, como sinal de protesto, pelo abandono. Dias da Silva, no entanto, está retornando à cena avoenga para restaurar o que o tempo teima em corroer. Esse seu retorno é pela escritura. Escrever suas memórias é colocar o passado em cena. É preciso, pelo texto, ouvirem-se as vozes, sentirem-se os cheiros e até puxar um dedo de prosa com aqueles que mesmo dormindo no cemitério da vila, continuam presentes no sítio. Cada curva do caminho, cada estaca, cada cancela, além das portas das casas, tudo guarda as digitais dos fundadores.

Todos esses elementos vão surgindo no rastro dos personagens. O cavalo do avô ainda trota bonito na mente do escriba. A cuia de bananas ressuscita a bananeira. O alfenim e a batida instauram canaviais. A noite de São João pipoca em traques e foguetões testemunhados pela fogueira crepitante onde os amigos se compadriam e os mais novos são apadrinhados. O pão de arroz, o milho assado, a canjica e a pamonha regalam os de casa e os de fora. O marmeleiro cheiroso acende o fogão da casa como a lareira que vem fundar o lar. Se algum mal-estar tenta estragar a festa, tem meizinha, chá de marcela e até óleo de rícino.

Dias da Silva vasculha toda a fazenda, montado no seu cavalo de pau, feito de talo de carnaúba, mesmo sem sair de seu apartamento da Capital, de onde recupera todo esse latifúndio. Dali ele traz de volta o andar do negro Luís, a cacimba do baixio, o fojo dos preás, a vaca preta do leite mais branco, o berro dos bezerros chiqueirados e os queijos prensados pela mãe Didia. A cena memorial possui dois imperadores: entre as pessoas, o dono da terra, o avô, entre as reses do rebanho, quem manda é o touro preto. As milícias de proteção, o exército particular, apresenta dois valentes soldados fiéis, "rompe-ferro" e "rompe-nuvem", os cachorros, como ajudante ainda tem o principiante "elefante".

Esses três cachorros são mais confiáveis que o exército de Napoleão, e ainda por cima, trazem para casa, entre os afiados dentes, peba, tatu e veado, para o tempero da ceia. Se a caça escassear, ainda tem o boi, a vaca, a ovelha e o porco. Entre os objetos de uso mais próximos, aparecem o pote com a água dormida, os copos na cantareira e a cabaça, que é um pote peregrino. Toda essa profusão de componentes do patrimônio do clã ainda permite que o autor conte a história de Pureza. Criada desde criança pela avó, um dia se apaixona pela pessoa errada e, para satisfazer seu desejo, foge à meia noite com um cabra não confiável.

Entre essas lembranças nada miúdas, o autor percorre de novo os caminhos de suas escolas. Primeiro no sítio Taquari, bem perto de casa. Depois, mais distante, no sítio Aroeiras com um professor filósofo, Antônio José de Lima, ou Antônio de Zuca, ou Anjoli, com que assinava belos sonetos. Mas o momento seguinte é em Araripe, no Grupo Escolar, bem distante dos olhos do pai e dos cafunés da mãe. O tio Padre, vigário da distante cidade, o acolhe para desasnar na vida dos livros. É aí que ele recebe do pai em visita, o carneiro branco. É o companheiro dos tédios, é o cavalo para passear na rua. Na volta à Barra o carneiro vem, mas no Crato, para pegar o trem tem que vender o companheiro. Trem não leva carneiro; açougueiro, sim. E o olhar do carneiro branco na despedida é de cortar coração.

O capítulo mais pungente é o que retrata sua estada no Seminário São José, no Crato. O desejo da avó era ver o neto padre, como fez com o filho Nonato. Daí que o garoto é colocado no internato sem nenhuma vocação para o sacerdócio. Instala-se na sua vida o desamparo, a saudade e o medo. Bicho do mato no meio de centenas de outros seminaristas na vida aprisionada do claustro. O uso da batina preta, o banho frio a cada manhã e missas e mais missas. O Seminário, no ponto mais alto da cidade, vislumbra o vale do Cariri, com a cidade ajoelhada aos seus pés e a imensidão verde dos canaviais enfeitando aquele mundo da liberdade que o Seminário retirava dos internos.

Após o Seminário do Crato, terminados os estudos ginasiais, Dias da Silva é enviado para o Seminário da Prainha, em Fortaleza. Depois de toda essa peregrinação por toda a década de 1950, é no novo internato onde mais pesa a batina para o ameaçador desfecho da ordenação para quem não tem vocação. É preciso tomar a grande decisão, deixar o Seminário. E isso é feito. Depois vem a Escola Agrícola, de Lavras da Mangabeira, dois cursos superiores: Direito e Letras, e o magistério. O casamento, o nascimento de cinco filhos e agora vem a coragem do retorno sem remorso. Esse livro de Dias da Silva não é de lembranças tão miúdas como diz. Afinal, o leitor o acompanha passo a passo e conclui que valeu a pena essa reconstrução de um paraíso perdido, o simbólico reino da Barra.


jbatista@unifor.br

11/12/12.

 

6 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page