top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Juras e lonjuras

Batista de Lima


Edmar Freitas jura que há lonjuras que o separam do canteiro onde brotou seu corpo e se instalou sua alma. Seu cordão umbilical está enterrado em Limoeiro do Norte e os dentes de leite jogados sobre o telhado da casa grande onde nasceu, enquanto ainda se cantava o mourão, mourão. Sua jura de amor à terra natal é um retorno do pródigo ao paraíso da infância. Montado no signo poético, ele chiqueirou palavras prenhes de ressonâncias literárias e as editou em forma de livro com o título de “Lonjuras”, pela Editora Premius, neste 2013. São poemas com cheiro de terra molhada, com trovões e relâmpagos. O prefácio é de Virgílio Maia, poeta e advogado, seu conterrâneo. Daí a citação de elementos característicos de sua terra e que foram marcantes na sua infância. As carnaubeiras, o alpendre, o bezerro, o luar e a casa trazem tantos apelos que a gente fica preso a esses adeuses. Esses e outros elementos povoam a memória do poeta no seu retorno. As carnaubeiras que lhe acenaram na ida, são as mesmas que lhe acenam no retorno. Há uma saudade instalada em cada verso. Entretanto ele não se entrega apenas a essa nostalgia, ele vê a vida com otimismo.

Impressionista, o poeta pinta sua terra com palavras colorantes. O pôr do sol é lilás, os melões-de-são-caetano expelem seu amarelo–sol e o céu fica cinzento, quando um poeta morre. Há, no entanto, uma cor que se ergue do conjunto dos seus signos, mesmo que não seja citada. Ao enumerar as partes da carnaubeira, o leitor, mentalmente, visualiza o verde de suas copas que no conjunto formam uma planície colorida. Também quando a casa é vasculhada nos seus contornos há a cor do barro das paredes que se espalha pelo terreiro e se estabelece na nossa memória. Essa casa revisitada instaura a figura do pai. É o pai que está sempre de prontidão em cada cenário, e principalmente nos compartimentos que vão surgindo entre o alpendre e a cozinha.

O alpendre, como janela da alma da casa, está sempre pestanejando boas vindas. É nele em que o “pater familiae” toma suas decisões e exercita seu poder de mando. “O alpendre / da minha infância / insiste em me seguir”. Esse alpendre que o segue, como boa companhia, é também porta aberta para a entrada do tempo, nos seus domínios, com todo o seu poder de corrosão. As coisas que estão no seu entorno são vitimadas por esse poder tanatológico. “O tempo / é um velho senhor / de barbas brancas / e dedos longos (…) O tempo / é um velho senhor / que não tem serventia nenhuma”. É um agente destruidor que vai pondo suas digitais em tudo com que se depara. E atinge até a memória do poeta que para dele se livrar é preciso transfigurar todos os bens nessa escritura poética.

Esses bens entram em cena principalmente no recinto da casa paterna. Os potes se apresentam repletos da mais dormida água, são duas bolhas de vida líquida transpondo a travessia de qualquer seca. As janelas são os olhos da casa, avistam lonjuras e atraem as brisas enviadas pelas palhas das carnaubeiras e festejam a noite com a chegada do refrescante aracati.

O quintal guarda um monturo de segredos que se justapõem de ano para ano. Os rastros do pai na soleira da porta são os mesmos do avô, do bisavô e dos mais distantes ancestrais que construíram caminhos e respiraram distâncias perseguindo sonhos. A porta é uma senhora retangular, sempre de pé, ofertando boas vindas a quem vem de fora.

Há também outros bens que envolvem a casa como que vigilantes contra a sanha destruidora do tempo. São elementos que saem do seu antigo posto e se põem de guarda na memória. As oiticicas com suas permanentes sombras seguram as assombrações amarradas nos seus troncos centenários. O cajueiro botador fornece o caju na safra e a castanha nas entressafras. A vaquinha leiteira berra, com seu berro de ternura, para dizer a quem ouve, que também é mãe dos meninos, a quem fornece sem pedir retorno, seu leite branco e espumoso. A lua cheia e vagarosa, posta na emborcadura do céu, espanta a escuridão da noite, vigia os habitantes da casa e põe romantismo nas gentes.

Além dessas imagens transfiguradas, Edmar Freitas presenteia o leitor com alguns conceitos e definições que de tão inusitados tomam uma roupagem poética. “Longe / não é a era, / é a escuridão. (…) Longe / não é o deserto, / é a solidão (…) Os mistérios da tarde / são insondáveis (…) É costume da lua / visitar os alpendres das casas (…) No sertão / as casas são viúvas / chorando seus maridos / no luto dos alpendres”. Essas imagens só funcionam poeticamente porque o olhar do poeta viu algo mais que a realidade. Como diz Manoel de Barros, ele transviu cada coisa. Por outro lado, o leitor precisa transler o poema para ver ainda mais além do que viu o poeta.

Essa transleitura do poeta Edmar nos leva às suas raízes fincadas em Limoeiro do Norte, no Ceará. Naquela cidade as maiores produções são de carnaubeiras e poetas. Se é belo o exemplo das carnaubeiras, refletindo no espelho da frondosa copa a claridade da lua cheia, também é bela a presença de tantos poetas que instauram a cidade onde as estrelas fazem seus ninhos. Essa lua é tão encantada com a poesia, que a cidade oferta, que, na festa do padroeiro, o balão que é soltado e abraçado por ela, é levado como lembrança para as dimensões mais altas onde Santo Antônio repousa.

Ao término da leitura dessas “Lonjuras”, de Edmar Freitas, o leitor deduz que o poeta está fazendo juras de amor a sua terra natal. Residindo há bastante tempo em Fortaleza, o autor retorna pesado de lembranças. Leva aos ombros o peso do mundo do qual nunca se livrou. Ao nos presentear com esses poemas, ele nos pede ajuda para o transporte de tantos signos nostálgicos. Por isso que ao acompanhá-lo nesse retorno deduzimos que esse seu telurismo é prova de amor à terra, ao ar, à lua cheia, à cidade, e, principalmente, à figura do pai, seu sustentáculo nessa caminhada para dar sentido à vida.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 07/05/13.


 


1 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Kommentare


bottom of page