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Joca Poeta do Arrojado

Batista de Lima

Lá está aquela vilazinha nascida sob o ronco da Maria Fumaça, e que por anos viu o progresso passar pelos trilhos. Com pouco mais de dois mil habitantes, Arrojado sempre foi uma porta aberta para o Cariri ou para a Paraíba. Foi sempre um entroncamento em que os trens bailavam em manobras e se iam. Alguns moradores terminaram se empregando na RVC, Rede Viação Cearense. Entre esses moradores, destacou-se João Gonçalves Primo, conhecido como Joca do Arrojado.

Joca do Arrojado tem como nome de pia e de cartório João Gonçalves Primo. Com esse nome ele não é o único do lugar, mas com tanto talento poético não nasceu outro igual em Arrojado. Aliás, por falar em nascimento, ao mundo ele veio em 1930. Aos vinte e dois anos casou-se como uma Ventura, aos vinte e quatro entrou na Estrada, aos cinquenta se aposentando. Não sabe quantos apitos do trem o acordou, mas entre eles, oito filhos foram nascidos. Tudo por ali tinha como destino passar em frente, como se estivesse em fuga, mas ele fugiu da fuga e ficou. Ficou cismando o mundo e poetizando o existir. Produziu poemas populares sobre os mais variados assuntos e ficou conhecido pelo estro em toda a região Centro Sul do Ceará.

Era preciso, entretanto, cravar em livro, as suas rimas para que não se perdessem no esquecimento. Foi então que entrou em cena o farejador poético Dimas Macedo. Esse lavrense ilustre, que há anos vem rastreando os valores intelectuais do povo da sua terra, colocou Joca no papel em formato de livro. Daí que surgiu "Histórias de um poeta, poemas populares". O livro assinado por Joca do Arrojado tem a chancela da Academia Lavrense de Letras e foi confeccionado pela Expressão Gráfica e Editora. São 51 páginas poéticas com organização e prefácio de Dimas neste 2015. São poemas que deslocam Arrojado da beira do trilho e o põem em um mapa bem maior.

Essa coletânea poética começa logo com uma homenagem ao rio Salgado. "Eu vou falar do salgado / que nasce na Batateira / banha Crato e Juazeiro / Missão Velha e Ingazeira / Aurora e Iborepi / e Lavras da Mangabeira". Esse poema todo em sextilhas, ao todo 17, vem composto em redondilha maior, com rimas nos versos pares 246. Muito musical, traz o ritmo das águas do rio e a curiosidade que cerca o Boqueirão de Lavras. Ali, as águas talharam as rochas, dando a impressão de que modernas tecnologias cortaram a serra para a passagem das águas do rio. Toda essa obra da natureza tem encantado turistas e inspirado poetas. Por isso que o poeta Joca termina por mostrar seu encantamento diante de tão belo produto da natureza na sua paciência milenar.

Além de cantar sua terra, em exercício telúrico, o poeta retorna no tempo, ao vasculhar a memória, no poema que instaura a casa paterna. Trata-se de "Casa velha", momento culminante do livro. A casa paterna tem seus compartimentos reconstruídos via texto. A construção se ergue sobre alicerces verbais em que se sobressaem as décimas rimadas e metrificadas com mestria. Nesse retorno, em busca do cordão umbilical que o liga às origens, todos os compartimentos da casa vão se apresentando, com seus habitantes atuais: "Um corujão cochilando / na linha da cumeeira / um rouxinol na biqueira / um filho acariciando / um gato velho miando / no batente da janela / um pedaço da panela / que mãe fazia comida / assim fiz a despedida / da casa que nasci nela".

Naquela casa ele passou os verdes anos, nasceu, cresceu, sonhou. A casa paterna surge na memória com todos os seus habitantes, compartimentos e utensílios. Nesses signos da memória, ergue-se a viola que pôs melodia nos seus poemas, quando eram muitas as razões para cantar. Essa viola emudeceu, mas seu ritmo permanece nos versos, sua música reverbera na memória. "Minha viola sinfônica / nunca mais eu peguei nela / que eu cantava saudade / debruçado em cima dela / entre nós tem um segredo / só quem sabe é eu e ela".

Além de cantar a casa, com tudo que ela contém, o poeta também revela suas intertextualidades. Mesmo se considerando da "linha analfabeta", tem bom ouvido para cantorias e leitura suficiente para conhecer quem mais o influenciou. Leu José de Alencar e Gonçalves Dias, nossos grandes representantes do Romantismo, mas também esteve atento aos poetas populares. Inspira-se em Anacleto Dias, Ferreira do Canindé, Justo de Amorim, Quinco Limeira, Cabral da Catingueira, Jerônimo Bonfim, Zé Gaspar, Juvenal Evangelista, Louro Pinto, Otacílio Batista, Geraldo Amâncio, Moacir Laurentino e Gustavo Marinheiro.

Joca do Arrojado trabalha na sua poesia, entre as principais bandeiras, a questão ecológica. Nessa temática sobressai-se a degradação da floresta Amazônica que sangra pelo rio Amazonas. Por isso que entre seus motes principais está: "E a natureza precisa / De alguém que cuide dela". A grande vilã dessa devastação, para ele, é a moto-serra, pois na derrubada da mata, "só se ouve lá do centro / os rancores dos motores / sendo os seus devoradores". São essas preocupações do poeta, embutidas nos seus versos que lhe dão uma atualidade e uma feição didática em muitos dos seus poemas. Por isso foi de grande proveito essa garimpagem de Dimas Macedo para trazer até nós o espólio literário desse poeta orgulho do seu povo, que é Joca do Arrojado.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 30/06/15.


 

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