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Ir como forma de ficar

Batista de Lima


Se não estou indo a lugar nenhum por que estou indo? Porque viver é ir. Ir até não mais poder. Posso até encalhar numa represa, cair em um bueiro qualquer mas estarei tentando ir. Ir é dar sentido ao exist(ir). Parar é admitir a entrega à morte. No meu ir, o transporte indispensável é o sonho. Sonhar os mais absurdos sonhos é mil vezes melhor do que não sonhar. Sonhar um voar como os passarinhos é melhor que ficar olhando ninhos e invejar os sonhos dos filhotes. Sonhar é uma forma de ir, mesmo ficando.

Se tiver que voltar que seja para começar um ir. Que seja para evitar o abismo deparado. Mas mesmo voltando, seja um construír. Por isso que na corrida da ida não se pode esquecer a construção da volta. A possibilidade de ter que voltar faz com que pisemos forte cada passada para que nossos rastros não se apaguem. É preciso que na jornada permanente, deixemos as marcas da nossa passagem. Mesmo que não tenhamos de voltar, outros nos encontrarão quando perdermos o rumo.

Mesmo que caiamos no bueiro ou encalhemos na represa haverá mão salvadora de quem seguiu nossos passos. Caminhar é desbravar caminhos. Caminhar é construir.

Quando pela primeira vez vemos a letra de um filho nosso no papel, estamos diante das marcas que fomos deixando para o caminho da volta. Aquela letra manuscrita na folha branca está dizendo que no caminho da ida deixei as marcas para o caminho da volta. Um dia me perguntaram por que escrevo a mão com tinta vermelha antes de digitar o texto. É porque a letra é sangue que vertemos a cada verbo. Escrever é vazar. É abrir as veias e deixar-se fluir. É sentir sair pelos dedos cada gota de sangue que vinha guardando. A escrita é uma doação.

Ao término da escrita de um texto é como se tivéssemos doado uma certa quantidade de sangue. Mas não é sangue do corpo, é sangue da alma. Dá inclusive aquela leseira espiritual depois de algo que acabamos à nossa imagem e semelhança. Por isso que a obra de arte leva parte de quem a criou. As digitais do corpo ali estão, mas estão principalmente as digitais do espírito. A obra está impregnada do seu criador.

A biografia de um escritor está inscrita no seu texto. Basta certa argúcia de quem lê para que se arme o perfil de quem escreveu. Afinal, a escrita é um caminho que o autor construiu para si, pensando em nós leitores. Cada vez que vasculhamos esse caminho nós a reformulamos. O texto é uma estrada em que cada transeunte faz um benefício. Quanto mais passantes por ela mais reformas serão feitas. Quanto mais leituras teve um texto mais sentidos ele forneceu para seus leitores.

Imagino quantos leitores já transitaram pelos textos bíblicos, pelos versos épicos da "Ilíada", pelos decassílabos camonianos de "Os Lusíadas". Quantos não já se travestiram de capa e espada na imitação do Cavaleiro da Triste Figura e saíram por aí atacando moinhos de vento, montados em sonhos rocinantes.

É por tudo isso que é preciso ir, ir sempre como foi Quixote, como foi Ulisses, Vasco da Gama, Marco Polo e Riobaldo. É preciso ir sempre, nem que seja esse ir uma forma de ficar. Ir deixando pistas, pegadas, sinais para os rastreadores.

E quando ficar for a única saída, ainda é tempo de ir. Ainda é tempo de escrever idas e vindas como forma de bem ficar. As grandes escritas foram formas de ir, mesmo ficando.

Quando escrevo minhas lutas, meus retornos, não sou apenas barranqueiro. Sou também caminhante por escrever o que caminhei. Minhas memórias dão sentido à vida que teve de parar em algum barranco para observar o fluir do que dela resta. Minhas guerras de jovem povoam a solidão dos tempos maduros. As batalhas vencidas ou perdidas, todas contam nesse meu ficar que é uma forma de ir. Por isso que agora quebro as vidraças que um dia consertarei. Esqueço agora as etiquetas de que um dia me valerei para dizer que as esqueci. Se não cuspir no tapete das convenções não vou poder um dia me lembrar que quebrei o cerimonial e que entrei pela porta dos fundos quando me esperavam na porta da frente.

Tenho um compromisso sério comigo mesmo, antes do compromisso com o outro. Não poderei fazer ninguém feliz se não transportar a felicidade em mim. E uma forma de estar feliz é ir em frente, cismando o mundo, descobrindo nas menores coisas as maiores qualidades. Preciso ir para saber que estou ficando por onde passo. Preciso ir com forma de ficar.


jbatista@unifor.br

10/08/10.

 

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