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Inez da pátria sonho

Batista de Lima




Posta em desassossego rememorativo, Inez Figueredo transita por variados meandros da criação literária, tecendo de azul as vestimentas do sonho. Depois põe um deus na sua teia, clariceando os mistérios da fala. Gudá é o fauno da flora. E o leitor que se cuide diante de tantas dêiades que lhe tentam pelos caminhos verbais. De Pippo a Gradiva, de Themis a Helena, apenas Bá com os pés no chão e Ulisses para que te quero. Páris ou Paris? Gudá, um Odisseu.

Inez, nesse seu novo livro, fragmenta o discurso e se põe no limite entre romance e conto, para produzir uma rapsódia, um canto de muita melodia a partir dos sons dos signos soltos que se encontram em coesão e coerência.

Nesse seu mais recente livro, "Há um deus na minha casa dos sonhos", Inez faz com que a memória fragmentada tenha seus pedaços colados na confecção do texto. Um monturo de imagens vai sendo revirado e o tecido narrativo criando forma. Daí surge uma prosa poética, ou é uma poesia em prosa? O que importa é a tepidez textual, às vezes até suarenta, que engordura o leitor. Entra, nesse ritual, ingredientes de uma culinária ritualística provocadora de sinestesias em conluio com a atmosfera erótica.

A densidade metafórica surge quando as imagens díspares dão-se as mãos e produzem uma textura coerente. O leitor precisa acompanhar esse ritual que vai da mesa à cama.

Produzido pela Editora Chiado, de Portugal, o livro, de 200 páginas, povoado de subjetividades, leva o leitor a um labirinto em que o tempo da narrativa rompe com a cronologia tradicional. Há momentos em que a narradora oscila da terceira para a primeira pessoa, forçando o leitor a uma reestruturação do enredo. Essa característica resulta numa leitura participante da elaboração do roteiro dos personagens. É como se o leitor estivesse com a narradora tentando um sentido linear

para os passos dos personagens. Nessa caminhada conta-se com o adjutório de Homero, Sêneca, Valêry e Joyce como sustentadores de um cortejo de signos em que o sagrado e o profano se tornam irmãos siameses.

Nessa narrativa, a autora põe-se na linguagem como quem tece uma rede para embalo próprio. Além disso põe o leitor nas beiradas que lhe sobram para que lhe borde o que por ela foi começado. Portanto é difícil lê-la sem continuá-la. Entretanto, é a única forma de acompanhar a correnteza mítica promovida por Inez. Até o título do livro, "Há um deus na minha casa dos sonhos", já sinaliza para uma aura de subjetividade em que "deus" e "sonhos" abrem uma via para um conglomerado de símbolos que marcam essa inovadora aventura literária. Não é, pois, um livro para uma única leitura, mas para um ir e vir do leitor para encontrar um norte para tanta figuração.

Isso acontece principalmente quando Gradiva, ao final, com seus versos, gravita entre sonho e realidade. Também mar e rio penetram-se, de acordo com a força das marés e o potencial das chuvas. Nesse momento poético, a palavra posta em carne viva, oferta sua saliva e dá-se o encaixe fundo e forma. A luta da narradora é para a aproximação íntima entre estrutura de superfície e estrutura profunda, sintagma e paradigma. Quando ela põe o sol "espatifando a noite em gomos amarelos", consegue o milagre da transfiguração poética. Outro momento transfigurado ocorre quando, a partir de fiapos metafóricos, ele tece uma coxa poética feito "sonora pua" que encanta o mais cético leitor.

Outra vertente que abre uma porta para ingresso no mundo mítico dessa casa dos sonhos de Inez Figueredo é a que se apresenta de forma líquida. Seu delírio líquido mantém o caminho das águas como a melhor via de interpretação de seus mitopoéticos incrustados na narrativa. Até nos momentos de erotismo, as sonorizações levam-na a ser uma "égua louca numa manhã rouca", liquidamente voltada ao amor como "narina do mundo". Assim, Gradiva em vez de encerrar a confecção de sua tecitura poética, abre as portas de seu mundo criativo para que o leitor continue essa reconstrução mitológica. A leitura se torna uma parceria na elaboração narrativa.

Essa parceria entre o leitor e a narradora pode começar com a identificação das intertextualidades. Daí que através dos nomes dos personagens com seus caracteres dá para identificar o cabedal de leituras da autora que se edifica a partir dos clássicos gregos, passando pelos romances de capa e espada até chegar às famosas obras da contemporaneidade. Começa com os latidos de Ulisses, a erudição de Menelau, a fantasia do tio Páris, a doçura da tia Helena, a secura da tia Temis e a gata Pandora. Por isso que no momento em que o leitor cruza com um desses personagens, no seu trafegar lectural, a atenção dá uma ligeira guindada para a Ilíada e para a Odisseia.

Inez Figueredo quando escreve bota o leitor para trabalhar. Na sua escritura, ela vai plantando vestígios, indícios, metáforas e signos de plurissignificações para a gente ir desvendando na leitura. Portanto, seu texto não é de fácil absorção. Se o fosse perderia um pouco do seu valor. Para ela, o novo é um ontem que mudou de roupa. Isso leva à conclusão de que sua grande quantidade de leituras dos clássicos vem vestir suas atuais criações. Daí que o leitor precisa também ter suas leituras de qualidade e quantidade para poder acompanhar o ritmo criativo da autora. Não é, pois, nada fácil acompanhar os passos de Gradiva.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 25/092018.


 

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