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In vino veritas

Batista de Lima


Um editor me telefonou, convidando para uma conversa. Uma semana depois estávamos almoçando em um bom restaurante e ele desfiando a proposta para o trabalho de parceria. Ele possuía cinco casos de pessoas que o vinham procurando há bastante tempo oferecendo suas histórias de vida para que alguém as escrevesse. Era um padre, uma dona de casa, um empresário bem sucedido, um ex-policial matador e um jogador de futebol. Em breves palavras ele discorreu sobre a história que cada um queria contar, ou pelo menos o que ele ouvira de cada um. Eles contaram pouco mas o suficiente para se ter uma ideia de suas sagas.

O padre tinha 35 anos e dez de ordenação. Era homossexual não assumido e não realizado. Desejava mas não tinha coragem de abordar os homens. Era temente a Deus, à família numerosa e católica praticante. Era o orgulho da mãe e um exemplo de virtude para os irmãos. Já havia feito muitos sacrifícios para abrandar os desejos. Fazia exercícios pesados durante o dia e orações noturnas, mas não podia ver homens musculosos, atletas e garotos coroinhas, tudo ia abaixo na sua cabeça. Tinha fantasias jamais realizadas, mas achava que contando-as sob pseudônimo, para alguém escrever, poderia ser uma forma de se livrar dessa tortura que o acompanhava desde a adolescência.

A dona de casa era uma mulher casada com um japonês. Tinha cinco filhos com o nipônico mas não abrandara o fogo. Com trinta e oito anos, queria contar suas aventuras ocorridas antes de conhecer o japa numa viagem como acompanhante. Casara virgem com Tanaka, era uma exigência do nissei. Foi necessária uma cirurgia de reconstituição para enganar o noivo. E deu tudo certo. Como não tivera dinheiro para pagar a operação foi preciso recorrer aos antigos companheiros de desfrute que se cotizaram para devolver-lhe a virgindade. Agora alguns ainda a assediam em nome dos tempos dourados. Ela se recusa mas a carne tenta principalmente quando o marido nas suas viagens de marinheiro passa semanas no mar. Ela se contrai para não cair e sofre. Quer contar seu drama de solidão e desejo. Quer uma opinião para se salvar da tentação.

O empresário bem sucedido não se satisfaz com o que tem. Quer ganhar mais riquezas e quanto mais ganha mais se inquieta por querer mais. Lembra-se do tempo em que fora vendedor de jornais nas ruas do centro. Amealhou bens, usando de artimanhas. Sonegou impostos, contrabandeou produtos importados, deu calote no sócio que terminou se suicidando, mas não se conteve. Quer mais e mais. Não importam os meios. Precisa matar essa fome que o consome. Carros, casas, lojas, fábricas não lhe mataram a sede de ter. Suas coisas, seus bens, são mais importantes que as pessoas. Acontece que sua formação católica de antigo seminarista mexe com a mente gananciosa e as duas vivem beligerando. O ter sempre leva a melhor com o ser. Ele não quer isso.

O outro era o policial aposentado. Quando estava na ativa cometera crimes. Depois que matou o primeiro bandido, perdeu a conta, perdeu a sensibilidade. Não tinha mais emoção ao apertar o gatilho. Seus superiores só o escalavam para casos de prisão com recomendação de "vivo ou morto". O bandido morria. Muitos tombaram diante de suas duas balas. Era uma na cabeça, outra no coração. Reagindo ou não, a morte era certa. Mas um dia aposentaram-no e ele começou a ver fantasmas nos seus sonhos. Levantava-se aturdido, meia noite, a atirar para o nada. Internaram-no e um pastor o convenceu ao arrependimento. Não resolveu seu problema. Os seus mortos estavam em toda parte fazendo pantomimas na sua frente. Foi ao psiquiatra, tomou remédios, mas os fantasmas continuavam em torno dele. Foi a um psicólogo que lhe recomendou relatar em livro todas as peripécias que havia feito. Ele contaria tudo, mas queria que alguém escrevesse por ele, homem de poucas letras.

O último era o jogador de futebol. Havia sido ídolo da torcida, artilheiro goleador. Fora sempre camisa nove, mas agora caíra na miséria. Gastara tudo com mulheres, com bebida e com jogo. Estava desempregado, sem dinheiro, sem mulheres e abandonado pelos filhos. Queria agora contar sua história para alguém que quisesse escrever e dividir os lucros. Seu livro seria um alerta para os jogadores do momento que desperdiçam tudo, despreocupados com o futuro. Estaria disposto a contar seus romances amorosos com todos os detalhes. Contaria as negociatas em que fez corpo mole para seu time perder. Contaria até os casos de doping em que se envolvera.

Apresentados os personagens, sugeri um encontro dos cinco comigo, sozinhos ou em grupo. O editor ficou de convidá-los e se o fez, o fato é que nenhum dos personagens apareceu. Os dias iam passando e só havia conversas com o contratante. Daí que comecei a verificar que o editor não iria me apresentar seus amigos. Então sugeri que ele me contasse em detalhes cada caso para que a história fosse iniciada. Com o tempo e com a amizade construída com esse contratante cheguei à conclusão de que o padre era seu irmão.

Captando pistas, também ele chegou a revelar que possuía um cunhado de origem estrangeira que era marinheiro. Só podia a dona de casa ser sua irmã. Pelo sobrenome dele verifiquei que um dos ídolos do nosso futebol devia ser da sua família. Faltavam o policial e o empresário. Foi difícil mas consegui arrancar dele a informação de que perdera um irmão em um hospício e que havia sido militar. Faltava o empresário, aquele homem ganancioso, que nunca matava a vontade de ganhar dinheiro. Era preciso descobrir quem era esse personagem para poder dar fecho à história. Era preciso traçar o perfil conforme suas informações.

A essas alturas das minhas buscas, tudo levava a crer que meu estimado dono da editora poderia ser o empresário. E aí seria fácil concluir que era uma história familiar com personagens bem diversos. Acontece que meu amigo contratante começou a se abrir nas suas conversas e relatar sua história particular. Antes de ser empresário fora seminarista, depois que deixou o seminário, onde era exímio atleta, foi jogador profissional. Ao terminar a carreira, passou uns tempos como policial civil. Fui encaixando essas personalidades no meu interlocutor mas sempre esbarrava na sobra da dona de casa. Aquela mulher fogosa, quem seria. Foi aí que no nosso último encontro em um bar do centro, bebemos uns vinhos mais que de costume e então perguntei de chofre quantos irmãos ele tinha realmente. Foi aí que ele respondeu com toda convicção que era filho único de mãe viúva.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 26/03/13.


 

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