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  • Foto do escritorBatista de Lima

Herança paterna

Batista de Lima


Algumas coisas ficaram. Uma tira de terra reclamando que o comprimento virou largura no último inventário. Reclamando que se outro for feito, em nada vai se tornar. Ficou um engenho só paredes de segurar telhas. É um engenho cuja fornalha sem fogo e sem caldeira é uma boca preta e desdentada que não mastiga mais. Ficaram umas vaquinhas soltas na serra, montes de ossos segurando o couro. E como berram. Clamam pelo dono, que se foi e não lhes disse adeus. Ficou um gato no telhado procurando rato, privado que ficou dos restos do prato do dono daquela casa. O cachorro não caça mais tatu, afinal, não tem quem coma. Fica o dia debaixo do alpendre dando as ordens que o patrão deixou. Pelo menos deu um exemplo aos chorantes daquele dia. Quando o caixão fechou, fez menção de pular dentro. Deixou um açude com mais herdeiros do que água. Tantos dele bebem, que secou de vez.

Daquele açude, os peixes se mudaram para outras terras em que águas não são apenas lágrimas. Ficaram oito filhos espalhados como xerém jogado ao vento. São oito retratos dele, são oito retratos dela, por isso os transportam onde vão. Tem este escriba, o mais velho, metido a escrever coisas, como forma de chorar mais sempre. Tem uma caçula e dengosa que inventou de ficar por lá, morando na casa dos pais, como se deles agora trajar-se. Aquela casa de alpendre parece de pestana baixa. É que a cadeira de balanço, de onde ele esperava chuva, dorme agora no esquecimento. O quarto onde ele dormia, com a mãe dos oito filhos, parece aquela vaca leiteira, que depois de muitos anos usando o mesmo chocalho, um dia voltou sem ele. A velha espingarda de cartucho, escondida atrás da porta, está lá sem serventia, para a felicidade dos marrecos e sossego dos carcarás. Um pouco acima dela está o sótão, onde os sonhos adormeceram.

Entre a casa e a vila, deixou o caminho que virou estrada. Por ali foi muitas vezes, levando secos os sacos que na volta repletos vinham de histórias para bem contar. O chapéu que levava à rua e outro que levava à roça, hoje são dois irmãos, que pendurados no armador, esperam pela cabeça de seu dono. Os amigos que de longe vinham, levaram de volta com eles, o "oh! de casa" e o "oh! de fora" e o gosto do café pilado no doce da rapadura. O moinho "jacaré" dos tempos que já vão longe, ninguém sabe onde se foi, ninguém por ele pergunta. A velha e frondosa aroeira que tapava o sol da tarde, no quintal atrás da casa, no crepúsculo se escondeu. Cinquenta redes dormentes, no silêncio dos baús, devagarinho fugiram, hoje só são meia dúzia. O pote de água dormida e o outro da água do dia eram dois gêmeos de barro que a geladeira expulsou. As latas de carregar água são apenas calos nos ombros.

A enxada bem batida, com cabo de marmeleiro, deixou os calos das mãos e jitirana nas cercas. Aquele luar de agosto com causos de valentia não traz mais o aracati às nove horas da noite. Quem também não chega mais são as cartas do correio com lonjuras carimbadas nas costas do envelope aéreo. Outro que não chega mais é o vendedor de miçangas, trazendo extrato e meizinhas e algumas notícias fresquinhas dos lados da Capital. Essas coisas que chegavam, mesmo que não cheguem mais, estão presentes na casa e muito mais na memória. É como a vaca rouxinol, o jumento macaúba, o cachorro javali e a burra juriti, que mesmo tendo um dia partido não conseguiram se ir. Tem a máquina de costura, com um selo escrito Elgin, onde a mãe cerzia as roupas e costurava certas tardes, com linhas de carretéis, bordando as beiradas do dia com histórias de cordéis.

Algumas coisas ficaram, outras porém foram levadas. A mãe levou o costume de trazer outro lençol quando a chuva no telhado melodiava suas canções de brisa. Com ela também se foi o pão-de-arroz do São João, as pamonhas do São Pedro e as canjicas dos domingos. Foi-se também a ternura no terço puxado à noite, na bênção para o dormir e mais outra no acordar. O pai deixou a bengala que não coube no caixão, mas levou o destemor das almas de encruzilhadas e seu jeito especial de cubar cada ambiente antes de nele ingressar. Levou o sonho de um dia botar os bois na almanjarra, tanger "navegante" e "rapé", "chuvisco" e "surubim", ressuscitando o engenho, e o cheiro do mel queimado. Levou histórias bem contadas no aconchego do alpendre com um pé encostando ao chão e o outro na cadeira trepado. Tudo isso que levou, apenas pensou que levasse pois ficaram todas inscritas nas paredes caibros e ripas e no alto da cumeeira.

Na sala de jantar deixou uma mesa feita de cedro, oito cadeiras de couro de velhas vacas leiteiras, que um dia morreram de velhas. Naquela mesa materna oito bocas sustentou com seus produtos da terra. Aquela terra sagrada, pedaço que caiu do céu, deu-lhe arroz, milho e feijão, de algodão, muitas arrobas, de rapadura, tantas cargas, que adocicou nossas vidas até o final dos dias. Deu-nos frutos todo dia, goiaba, manga e banana numa disputa bem alegre com os bandos dos passarinhos. De todos os seus deixados, levo este jeito esquisito, quando vou dobrar esquinas, o seu respeito aos mais velhos, o amor pelas crianças e a voz do seu silêncio, que sempre falou mais alto. Tem porém uma herança, que pesa nos meus costados, nesses costados da alma que sinto mas ninguém vê. Foi seu olhar derradeiro, falando sem dizer palavra, cravando na minha pequenês os mil mistérios da vida. Aquela janela da alma que por seis décadas era silêncio, de repente abriu-se em portas, e a ternura do mundo todo sangrou por omnia saecula saeculorum, amém.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 15/04/14.


 

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