top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Gotejamento poético

Batista de Lima



A poética de Francilda Costa resulta de um gotejamento lírico de um mundo interior que salta para fora num exercício de pura catarse. Seus poemas são construções protetoras, agasalhos, onde ela pugna contra a solidão. Por isso que ´longas têm sido as horas de todos esses dias...´ É impossível que o poeta não se revele na sua escritura. Seu texto é sua biografia. E o lirismo é a permanente chama de juventude que cada um transporta por toda a vida. Mesmo alguém já tendo dito que a maturidade é o tempo da epopéia, não se descarta o encantamento do ´eu´ em qualquer fase da vida. Basta pulsar um coração. Francilda Costa é coração. No seu íntimo ainda pula de corda a menina que nunca ficou antiga. Quem ficou antiga foi a Praia de Iracema, porque envelheceu ao se querer só moderna. Transformou as coca-colas em mariposas, que se esfregam nos fálicos arranha-céus que cobrem as últimas casas, últimas verdadeiras fêmeas da reprodução de nossas lembranças. A menina Francilda, antiga e atual moradora, perdeu o horizonte, os búzios, o verde mar, a ponte metálica, o Lido, o Iracema Plaza, o Estoril, os navios estranhos descarregando mistérios no porto ao largo. A Praia de Iracema não é mais virgem, nem tem mais os lábios de mel, nem o pé grácil e nu, roçando a relva. A autora presenciou toda essa catástrofe e pôs nos seus versos. São circunstâncias criativas que se alongam por seu canto elegíaco à prima Natércia Campos que partiu tão cedo, e à filha Fabíola que continua seu caminhar por onde os caminhos se abrem. Entre esses cantares é preciso uma canção de louvor à madrugada, ao quebrar da barra, ao alvorecer. Essa ´hora íntima´ em que é possível ouvir a estridência do nosso silêncio, as batidas do coração que transportamos em compasso com o fôlego que nos oxigena; é o momento em que os pássaros se encorajam para cantar ninar para o dia que nasce e para as criaturas que acordam. Essa sonata encanta a poeta porque ela é toda porosa na recepção do que só os entes sensíveis captam o que ainda existe de natureza no nosso entorno. É, no entanto, a solidão, a velha e rabugenta companheira da autora. É em torno dela que germinam as metáforas que se arrastam bojudas nos compartimentos da alma. Daí que vão sendo arrastados pelo assoalho do texto, ´casarões devastados, uma lua ensombrada, o esqueleto da ponte metálica, madrugadas cheias de misericórdia, telhas sisudas, alcovas mortas, segredos inúteis, dramas complicados, mar do esquecimento, deusa via-láctea, saudade impressentida, perdas, pedaços, ilhas de sombra´. Depois ela fala numa mulher sozinha que é cantada no poema ´Solidão´, enquanto ouve o badalar metódico do relógio fecundando o tempo. É preciso conhecer de solidão, para de mãos dadas com Francilda Costa devassar os meandros dessa construção vazia que a solidão preenche. De mãos dadas, vagar com ela pelas ruas poéticas do Rio de Janeiro em companhia de sua prima Diana, tão cheia de viço, tão serelepe que não se concebe que tenha sucumbido à indesejada das gentes, numa cidade que deixou então de ser maravilhosa. Maravilhosa também poderia ser Veneza se não fosse alimento que o mar aos poucos vai digerindo em companhia da maresia. Estar em Veneza é também andar de mãos dadas com uma morte anunciada, o que provoca uma grande saudade do mundo, e se morre com ela. ´Sou Veneza, / submergindo aos poucos / até o mergulho final. / Sobrenado, enquanto nos postigos rendilhados / a sombra dos vultos extintos perpassa´. Essa angústia diante da corrosão do que é efêmero, leva Francilda Costa a provocar uma certa urgência nas realizações. É então que aparece seu momento poético mais pungente, que transparece no poema ´Classificado´. ´Procura-se: / de verdade ou mesmo em sonho, / quem convide mulher honesta, de bons princípios, / à penumbra de boteco antigo, / [...]para dançar um velho chorinho brasileiro /´. O que a autora quer, é que alguém livre a ´moleca travessa que vive na pessoa da anunciante, / da prisão solitária, / onde se queda obediente e submissa / aos sagrados ditames da maturidade´. Ao final do poema ela arremata essa inquietação, diante do tempo verdugo e da solidão que goteja pingos de ferro, com uma tirada poética de Vinícius de Morais: ´Seu tempo é quando´. Com relação ao seu estilo, o leitor aos poucos vai captando um ritmo oratório de seus versos, entremeado repetidamente de um tom marcial como se uma melodia wagneriana servisse de tablado para sua dança poética, que muito mais é uma marcha do batalhão dos signos. Desse monumento emerge a cor amarelo-laranja, tendendo para o vermelho. Mas outras cores também preenchem o seu viver, como o simpático azul para momentos de não fazer nada, ou o branco para imprimir uma dignidade fria. Mas o melhor é quando ela mistura todas as cores e instaura o arco-ires, onde ela se debruça absolutamente livre de preferências. Esse arco-ires é seu companheiro das manhãs, quando a parafernália do dia se projeta pedindo vestes. Outra vertente por onde se pode enveredar para adentrar a poética de Francilda Costa está encrustada na saudade. E saudade é um dos temas principais dos poetas brasileiros. Isso desde os primórdios de nossa literatura de mestiçagem que tem saudades da Europa portuguesa, da África Negra e do paraíso ameríndio devastado pelos que se dizem descobridores. A autora tem saudades. Mesmo sendo já uma ´avó arredia e franca / sem muito jeito de mostrar saudade´, ela se pergunta ´para onde imigrou o som / dos pianos tocados nas salas / dos sinos à hora do Angelus / dos carrilhões na torre da igreja / dilacerando a metade do dia / o começo da noite?´. Por fim, tenta-se chegar ao final do livro e não se consegue. Pode-se até ler todos os textos mas não se conclui a leitura, sob o ponto de vista do que ela escava na nossa sensibilidade. Isso é resultante de uma catarse pungente que se esvai da autora e inunda o leitor através de um gotejamento que leva a uma inundação que nos ameaça de afogamento. Assim, como Francilda Costa, também esperamos, mesmo inutilmente, ´que a velhice esqueça o portão de nossas casas´. Só nos resta pois a mão estirada em busca de uma salvação. Para a autora, seu texto, sua poética, é uma visita de saúde, é um alento diante de uma procela que ameaça, daí que outros livros deverão ainda ser escritos por Francilda, para que a mesma vá driblando esse luto que se quer melancolia. De nossa parte que também queremos a salvação, é ficarmos atentos, pois ´diariamente há espera gotejando de todos os poros´.

 

23/06/2009.

 

2 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page