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Gente, bichos e coisas

Batista de Lima


Francilda Costa sempre se rebelou contra a cultura do efêmero, do descartável. Sempre demonstrou ojeriza ao tributável, às cifras e às grifes. É tanto que certo dia, no auge de sua carreira no magistério universitário, concluiu que era hora de parar, dar o lugar para os jovens que estão chegando, repletos de pós, de tablets e teclas. Vislumbrou uma tendência narcísica nas atuais gerações de concorrentes seus e preferiu se recolher, como Eco, nas montanhas do seu domicílio para de lá fazer reverberar seu grito de alerta contra o virtualismo das relações. O coração tem reentrâncias que as câmeras não alcançam.

Seu nome Francilda organizou-se de um somatório do nome do pai, Francisco da Costa, funcionário a vida toda, do Banco Central, com o nome da sua mãe Nilda, que não demorará, chegará aos 110 anos. Primeiro quis ser atriz. Não deixaram. Depois criou seus palcos particulares: o magistério, onde sempre transformou a sala de aula em um palco, e a literatura, campo onde já semeou quase uma dúzia de livros. Agora vem de criar um novo palco, um CD em que une seus belos textos à sua voz e à música. O título, "Falando de gente, coisas e bichos".

Segundo ela, na atualidade, há, em todas as culturas, uma mediocrização que só se espraia horizontalmente em expansão incontida, como rio fora do leito, dado o assoreamento dos valores humanísticos e um muxoxo dirigido às coisas simples da vida. Quer-se falar do novo, da matéria em translado, tem-se medo das verdades intransitáveis, pois não atendem a conveniências e ou modismos. Francilda Rita de Sidou e Costa está além de tudo que apenas é superfície. Entre a pele e o abismo ela se coloca, resgatando o que tentamos afogar pelas mãos da nossa insensatez.

Seu texto sempre andou na contramão das criações em que linguisticamente as frases foram ficando cada vez mais curtas, denotativas, ou descambando para um hermetismo a que somente iniciados têm acesso. Na sua visão, é sob a justificativa da palavra inclusão, que adoecemos o idioma pátrio com a vulgarização e a impropriedade de termos que passam a significar, arbitrariamente, a ideia do freguês de ocasião. Essas suas ideias se fundam, principalmente, no retorno conseguido por anos de amor ao ensino universitário em que um dos entraves da aprendizagem sempre foi a falta de leitura, principalmente o distanciamento que as novas gerações estabelecem do convívio com os clássicos.

Diante dessa conjuntura, Francilda Costa, nos textos que compõem o "Falando de gente, coisas e bichos", vai abrindo seu caminho numa viagem contrária ao sistema. Sabe ela que chuvas de verão não são suficientes para fertilizarem solos para o plantio de árvores do pensar. Sem pressa, sem patrocínio, vai acreditando na filosofia do samba de grandes mestres da MPB, em que se diz a verdade irrecusável: "O ouro é pro fundo do mar... madeira fica por cima." Para ela, o pensar precisa passar por uma culinária onde o sabor do saber é o prato principal. Por isso que os textos do CD não podem ser captados apenas na sua imagem acústica mas prospectados a partir do manancial que instauram na seara do psíquico.

Entre os textos é preciso destacar aqueles que são releituras de Saramago e Fernando Pessoa. São textos que estabelecem intertextualidades apenas como mote. Quando trata da noção de ridículo ela parte do poema de Fernando Pessoa que afirma serem ridículas todas as cartas de amor. Para ela, no entanto há muitas outras formas de ridículo. Com relação a Saramago, o que ocorre é uma elegia por ocasião do falecimento desse escritor português. Ao final ela indaga o que resta fazer diante da descaracterização dos rituais, da cultura, dos saberes. "Jogar a escritura da palavra honesta no mar morto do compromisso com aquilo que é, pois a densidade do sal a manterá incólume, serenamente boiando à flor da água turva."

Sua apologia em torno do silêncio é apresentada em dois textos de bela feitura, porque instigam o leitor a se colocar diante desse problema da modernidade. A modernidade é barulhenta e cotidianamente temos removido o silêncio de nossas vidas. O silêncio não é apenas a falta de barulho mas o esquecer de tesouros impressentidos. O controle de vulcões que guardamos é uma forma de produzir silêncios. As imagens que aparecem, ilustrando os textos que são interpretados, são imagens silenciosas. São amplidões com as cores do silêncio, com mares nos beijando de azul ou serras que de longe nos observam imóveis. Francilda Costa instaura silêncio nos seus escritos. Há uma paz que transcende da frase como que para gritar sem falar, sem nenhum barulho.

Esse silêncio está no conjunto da obra, começando pela música de Ricardo Vignini, somada ao trabalho fotográfico de Fabíola Costa Girão. Mas o mais importante de tudo é a produção executiva, os textos e a voz de Francilda. Isso tudo comprova que o seu afastamento de sala de aula não a dispensou do mister de mestra. Francilda Costa para ensinar não precisa estar entre quatro paredes de uma sala de aula. Ela continua ensinando porque dá conselhos. Escreve como quem clama pela vida, por um humanismo que se esvai em nome de uma velocidade, de uma concisão em que até a palavra está sendo expurgada da vida. Agradável ler o que Francilda escreve, e mais agradável ainda é ouvi-la com sua sabedoria.

Lendo ou ouvindo Francilda, tem-se a descoberta mais difícil: a do óbvio, do rotineiro, do "pão pão queijo queijo", da matéria-prima da vida (alegria, dor, cheganças e adeuses) no tempo original de plantar, colher, dar e receber, ganhar e perder, nesse "três três passarás" de que ninguém escapa: "se não for o de diante, há de ser o de detrás". De Francilda, já dizia seu pai, em prefácio ao primeiro livro da autora, "Encontro maior": "Linguagem desenvolta, fluente, límpida como regato cujo leito ao sol se oferece. Uma menina intrusa, sans tache, embaçando no espelho a carranca do tempo como inquisidor".


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 14/02/12.


 

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