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Gabriel e as saudades do Recife

Batista de Lima




Gabriel José da Costa é mais um pernambucano a cantar as saudades de Recife. Isso não é novidade, pois é difícil um poeta pernambucano que não cante as saudades da capital do seu estado. No caso de Gabriel, essa saudade já lhe atormentava aos 15 anos, pois os poemas que enfeitam esse seu novo livro foram escritos quando o autor, glabro ainda, vasculhava as madrugadas cismadoras. "Saudades do Recife" é um livro de poucas páginas e muitas saudades. Se não existisse aquela cidade, Gabriel a inventaria para ter saudade dela.

Gabriel José da Costa, livreiro que o Ceará ganhou de Pernambuco, retorna a Recife, nominando as ruas do seu tempo de adolescente e chorando a saudade delas. São ruas antigas que o tempo sepultou, levando junto os "lampiões esqueléticos". Nessa imersão, o poeta vislumbra as varandas de ferro e as grossas paredes das casas do velho Recife, como símbolos do poder dos grandes usineiros. Os coronéis possuem seus latifúndios, mas constroem os casarões da cidade para colocarem os filhos para estudar.

A reconstrução desse passado recifense leva Gabriel a botar em evolução os grupos de frevo, os maracatus, os pastoris e os bumba-meu-boi. Ao som dessas apresentações que lhe vêm do passado, surgem na lembrança, a Cidade Velha, o Cais do Açúcar e as igrejas de pedras. Os personagens que povoam esse cenário são mendigos, escravos e senhores da riqueza. Isso comprova que a saudade sentida pelo autor chega a ser até de situações anteriores ao seu nascimento. Afinal, toda uma história está escrita nas dimensões da Cidade Velha, e falam mais alto que os livros de história.

Gabriel, ao nadar num mosaico de lembranças, mergulha fundo nas ondas temporais de sua Veneza, para pescar o que melhor lhe oferta a cidade dos seus sonhos. Arqueólogo de afetos, o que vem à tona são as reminiscências maternais que a cidade lhe oferta. Da rua da Guia à praia de Santa Rita, da rua Direita à rua Augusta, as lembranças vão atapetando o andar do poeta que as transforma na fala infinita da poesia. Vez por outra, dá uma parada para um papo descontraído com Joaquim, o mais famoso dos Nabucos e mais à frente pede licença ao baiano ciumento, poeta dos escravos, para dar um abraço em Eugênia Câmara.

Recife também se apresenta ao poeta com sua feição afrancesada, de fraque e cartola, polaina e bengala. Entretanto, quando o transeunte vate cai na real e vê a cidade atual, depara-se com os "dinossauros de cimento armado" como gaiolas superpostas. Entre o real e o imaginário, a cidade expõe sua artéria principal, o rio poluído quase parando a diástole urbana. É preciso, pois, o cateterismo do Capibaribe prestes a enfartar a cidade que não soube envelhecer. Só a voz da poesia que verbera esse perigo, pois o mundo do progresso se manifesta na verticalidade dos grandes prédios erguidos sobre os escombros da história de que tanto a cidade precisa.

Ao transitar pela cidade que já fora sua, o poeta vai da arquitetura dilapidada às reminiscências amorosas dos verdes anos. É então que aparece Mira "de punhal e gibão", com a quentura do sertão que a gerou. Misto de cangaceira e vaqueira, essa morena ocupou o coração do poeta ainda imberbe. Depois vem Rejane que se perdeu quando foi achada no cais pelo estranho marinheiro.

Quanto a Antônia, a grande perda foi a infância que nunca mais foi recuperada. Já Bela também vitimou-se do cais, do sal e do sol, e mais uma vez aqueles homens de olhos de distância levaram sua juventude de pureza. Isso comprova que as musas de Gabriel têm uma propensão para o desperdício da inocência.

Nessas andanças nostálgicas, Gabriel ainda incursiona pelo folclore, fazendo uma pausa no seu périplo urbano. Visita, então, a Mãe-d'Água e depois navega pelo Beberibe como navegaram Bandeira e João Cabral. As águas tristes do rio passam vagarosas por baixo das pontes no seu caminhar sem volta em busca do mar oceano. O rio vencido parece um touro inerte depois de derrubado numa vaquejada de Surubim. Nessa mistura de actantes de sua escrita poética com feição narrativa, o Nordeste mostra sua face. É o sol que tosta mas cura. Essa mudança do urbano para o rural mostra o poeta conhecedor de várias realidades.

Gabriel José da Costa escreveu esses poemas aos 15 anos, em 1949, quando cursava a quarta série ginasial, interno no Colégio Marista de Recife. Esse recifense, entretanto, vítima da repressão política nos anos 1960, fugiu para Fortaleza onde permanece até hoje. Livreiro, Gabriel transferiu sua livraria do Centro da cidade para o campus da Universidade de Fortaleza em que especializou- se na venda de livros da área jurídica e travou amizade com os dirigentes da instituição e com os acadêmicos. Acontece que os originais agora publicados haviam ficado em Recife por ocasião de sua fuga e, só em 2009, sua irmã Fátima, depois de meio século, o resgatou para a devida publicação. Vale a pena portanto conferir o talento que já possuía Gabriel aos seus 15 anos de idade.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 28/08/2018.


 

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