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Fortaleza de tantas falas


Batista de Lima


É difícil encontrar uma fala que represente nossa cidade. É uma cidade feita de falas. Variadas falas transcendem do seu passado ao seu futuro. As do passado são passivas de elencar, mesmo já apresentando diversificados sotaques. Teve mais de um século de aformoseamento afrancesado antes de aqui aportarem americanos guerreiros em trânsito para a África, na Segunda Guerra Mundial. Já por aquelas épocas ela sofria de apoplexia no Jacarecanga e de indigência no Pirambu.

Esses dois extremos perduram com suas respectivas falas por longos anos. Mesmo antes, quando o chique era habitar a Imperador ou a Dom Manuel, Fortaleza já possuía suas dicotomias de expressão. Pescadores, chapeados e retirantes já falavam a língua dos sem vez. Entreposto para comércio de escravos e depois para o trampolim de arigós, paroaras, paus-de-arara e candangos, esta cidade acenou adeuses para gerações que se foram montadas na esperança de sobrevivência. Os que voltaram trouxeram suas falas, seus costumes d'além fronteira e contribuíram para essa salada de sotaques.

A Fortaleza de hoje é produto dessa diversidade. Não possui um falar que lhe identifique. É um painel multilinguístico, rico de tonalidades, mas difícil de comportá-lo em uma mesma linha de recepção. Centenas de favelas, que lhe servem de cinturão, padecem de saneamentos humanitários que lhe proporcionem uma fala igualitária com um miolo em que uma parcela da população desfruta dos bens de consumo comuns em metrópoles de primeiro mundo. O produto dessa desigualdade deveria redundar em choque de falas.

Não se entende, entretanto, como a convivência pacífica ainda margeia esse dia a dia. É evidente que nos últimos tempos a violência tem aumentado de forma tal que se pressupõe ser o surgimento de uma nova fala daqueles que antes não podiam falar. Os meios de comunicação levam aos lares o brilho de um mundo de privilegiados bem nascidos que entra em choque com os desvalidos periféricos. Desse choque surge uma forma nova de linguagem e certos bens de consumo são adquiridos de arma em punho.

Assaltos, tráfico e assassinatos são formas de linguagem. A linguagem dos excluídos busca uma forma de nivelar os que muito têm aos que de nada dispõem. Para isso não lhes importam os meios para atingir seus fins. A repressão policial se torna ineficiente por cortar os galhos dessa grande árvore carnívora, sem mexer nas suas raízes. A educação que poderia ser unificadora dessas falas, diferencia o público do privado. A educação pública confunde quantidade com qualidade. Termina por haver no universo educacional duas falas bem distintas.

Esses dois tipos de escolas não conseguem a unificação das falas estudantis. Os alunos das escolas estaduais e municipais não dialogam com os privilegiados frequentadores de meia dúzia de escolas de elite, verdadeiro nicho de bem nascidos. O sistema de cotas para o ensino universitário dilapida o mérito para tentar uma unificação de falas. Se funciona ou não, é muito cedo para avaliar. Acontece que o tempo e o mercado de trabalho vão dar essa resposta. A criação de escolas públicas de tempo integral tem sido ineficiente tendo em vista a demora com que são criadas. Essas escolas tirariam os menores da rua e abririam portas para a inserção no mundo das artes e dos ofícios.

A educação padroniza falas. Para alguns críticos, no entanto, a padronização de comportamentos enfraquece a sociedade e lhe tira a criatividade. Se realmente assim for, viva nossa cidade, que escapoliu de padrões e nos apresenta essa riqueza de linguagem. Nosso patrimônio arquitetônico tanto foi vilipendiado que esta cidade tem perdido a memória. Tem se tornado uma cidade sem história. O que faz com que percamos a fala dos que nos antecederam, daqueles que se nos anteciparam. Nossa construção cultural não pode prescindir dos alicerces que nossos ancestrais construíram.

Fortaleza não tem sido forte diante de novas falas que vão surgindo. A violência e a desassistência na periferia geram os bailes funks, a vestimenta descolada, os games e a audiência assombrosa aos combates de UFC e MMA. Essas mudanças de comportamento são falas alternativas que vão se estabilizando e se cristalizam como vozes de quem não vinha sendo ouvido. Suricate Seboso e Xafurdaria são metáforas com que a periferia se blinda para ocupar espaços que a classe média foi deixando desassistidos. São falas fortíssimas de uma cidade que esqueceu suas beiradas. Essa Fortaleza de tantas falas precisa ser ouvida nos seus gorjeios antes que eles se tornem só lamentos.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 12/08/14.


 

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