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Folguedos vestidos de ontem

Batista de Lima




Ainda alcancei na minha meninice e na adolescência, que não vão tão longe, uma série de folguedos que se praticavam nas novenas, nas renovações, nas noites de São João e nas quermesses. Eram brincadeiras, geralmente praticadas por rapazes e moças, durante as quais surgiam namoros e até casamentos.

Até durante as esperas de galo, que ocorriam na Semana Santa, essas brincadeiras eram praticadas, dado o clima respeitoso como tudo decorria. Enquanto se esperava pela reza e até depois dela, não havia horário determinado para tudo terminar. Enquanto fosse distribuído café, chá, sequilos e às vezes até bolo, a festa continuava marcada por muita alegria.

As novenas de Santa Luzia eram esperadas com muita expectativa porque eram nove oportunidades seguidas de encontro da mocidade dos sítios. Já as renovações ocorriam no aniversário de casamento dos donos da casa. Hoje ainda há famílias que preservam a tradição, chegando às vezes a praticá-las até em homenagem a casais que já faleceram. É evidente que preservando a mesma casa em que habitaram por todo o tempo de casados.

Quanto às noites de São João, há ainda quem faça a fogueira, mas o que mais se pratica são quadrilhas e forrós estilizados. Enquanto isso, nas festas do padroeiro, pouco se utilizam os partidos azul e encarnado, as ciganas, as barracas e os leilões. Por outro lado, as debulhas de feijão não ocorrem mais pois o fracasso da agricultura familiar nos tirou essa prática.

Nesses folguedos religiosos pouco se dançavam, mas ocorriam brincadeiras. Uma delas era o "Casamento oculto". Ficavam dez rapazes de um lado e dez moças do outro. O organizador cochichava no ouvido de cada moça quem seria o rapaz com quem ela casaria. Geralmente era secretamente formado um par que já vinha flertando. Depois o rapaz se levantava e ia perguntar à moça: "Você quer casar comigo?".

Se ele acertasse, havia palmas. Quando todos estavam casados, começava tudo de novo, mas dessa feita eram as mulheres que iam procurar os homens. Era importante que o organizador fosse alguém com liderança entre os jovens, e que conhecesse já a tendência para formar casais afinados.

Outra brincadeira, ainda mais inocente, era "O anel". Ficavam, mais uma vez, mulheres de um lado e homens de outro, todos sentados em fila. O organizador arranjava um anel com alguém presente e ia passando as mãos fechadas nas mãos de cada um, primeiro entre as mulheres. Entre uma dessas mãos era deixado o anel, de forma que ninguém desconfiasse.

Logo em seguida, um por um, os rapazes procuravam uma moça para encontrar o anel. Quando alguém acertava, ganhava uma prenda e começava tudo de novo.

Quando essa brincadeira terminava, podia começar "O lado direito". Nesse caso, o número de homens e mulheres sendo o mesmo. Cada um recebia um número. Além disso, todos formavam casais, com exceção de um que ficava sozinho. Esse que ficava só gritava: "Meu lado direito tá desocupado" e todos gritavam: " Quem ocupa?". Era então que a pessoa gritava o número de alguém que queria ao seu lado. Isso já era uma manifestação de carinho e podia ser o começo de um namoro.

Parecida com essa, havia a brincadeira do "Viúvo" em que entre os casais formados ficava um dos rapazes, geralmente o mais velho, como viúvo. Então o organizador anunciava as virtudes do dito cujo, suas riquezas, tudo fictício e exagerado. Depois dizia da pretensão do mesmo em se casar com uma das presentes. O viúvo saía entre os casais sentados e escolhia a moça que queria e lhe pedia em casamento. Se a moça aceitasse, dava-lhe a mão, se não quisesse, mostrava-lhe o cotovelo como rejeição. Assim, o viúvo ia procurar outra moça. A brincadeira só acabava quando todas as moças tivessem arranjado o seu viúvo.

Ainda havia a brincadeira "O gato podre", menos usual mas também praticada. Cada participante recebia o nome de um secreto parceiro para defendê-lo de comer o gato podre. Depois disso, o organizador, para iniciar, contava as desventuras do bichano que havia morrido e estava em decomposição, exalando terrível mau cheiro. Então, de repente, ele parava e dizia: "Quem comeu esse gato foi fulano". Citava o nome e o parceiro defendia dizendo "fulano" não come gato podre, quem comeu foi "sicrano". E lá havia a mesma defesa seguida da acusação. Quando um parceiro esquecia de defender o outro, esse comia o gato, era vaiado e começava tudo de novo.

A esses folguedos, outros de menor monta se juntavam. Vaquejadas e pescarias eram como se fossem festas. Nas olarias, durante a queima das caieiras, que duravam a noite toda, brincadeiras eram inventadas para o tempo passar mais rápido. Também brincadeiras eram inventadas nas bagaceiras dos engenhos, nos aviamentos durante a feitura da farinha, e principalmente em torno da fogueira de São João. Todas, entretanto, vão caindo em desuso, vitimadas pelos apelos da globalização, que pôs televisores nas salas e celulares nos ouvidos.

A modernidade venceu a tradição e até as experiências de chuva estão se tornando obsoletas diante das previsões que vêm mostrando certeiras os tempos do dia seguinte. Não sei por que, no entanto, deixamos de praticar nos dias de hoje, esses folguedos vestidos de ontem.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 31/05/2016.


 

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