Batista de Lima
Dimas Carvalho está curtindo um luto. Pode ser pela morte da poesia, pela maturidade contaminadora da existência ou pela partida sem volta de alguma musa. Fato é que sua mais recente produção poética é um verdadeiro festim de sombras. Além das sombras, há um pessimismo que margeia seus versos que de tão forte pode atingir o leitor. Esse seu livro, "Uma sombra no espelho", é perigoso para leitores muito influenciáveis. A Expressão Gráfica e Editora, talvez influenciada pelo ano 13 que vivemos e pela seca que assola o nosso Ceará, em Sobral inclusive, é cúmplice e carpideira. É difícil encontrar um poema dessa publicação que desatravanque portais para o mundo da esperança.
Dimas é professor de Literatura na Universidade Vale do Acaraú e nos seus escritos anteriores, principalmente na prosa, tem se destacado pelo fantástico. É um fantástico que tem caracterizado os escritores cearenses da Zona Norte. Gerardo Melo Mourão e Alcides Pinto comprovam esse fenômeno. Nesse seu mais recente livro, no entanto, ele já inicia o volume com uma definição de poesia que já envolve a sombra. "Se a Literatura (a Poesia) é mímese - imitação, reflexo e espelho da Realidade -, a imagem que ela projeta é oblíqua, indireta e ambígua, jogo de sombras num cristal fragmentado: entre as duas, eterno e transitório este Ser frágil e cruel - o Homem". A partir desse alerta, na abertura do livro, o leitor já se previne para o que vem após.
Os poemas vêm distribuídos em sete blocos: I- As Sombras, II- Recaída no Soneto, III- Quinteto Romano, IV- Outras Sombras, V- Homenagens, VI- O Espelho ao Avesso, e VII- Reflexos/ Estilhaços. Logo no primeiro poema ele já diz o que pensa: "O que escrevo me condena / o que escrevo é a queixa de quem já fui". Esse tom confessional continua no segundo poema: "Sou a solidão/ que não tem clemência". Antecipando outros poemas sobre a morte, há um grande pessimismo diante da vida: "Dentro de mim estive sempre ausente/ fora de mim também não me encontrei". Logo em seguida há quatro poemas com a temática da morte. Ainda bem que o leitor já se encontra prevenido com o que leu anteriormente.
Esses poemas sobre a morte apresentam um Dimas Carvalho existencialista em permanente confronto com o tempo. Sua revolta contra a sanha destruidora do Cronos o torna um Zeus que retorna para salvar os irmãos engolidos pelo pai. A sua vingança contra esse pai-tempo é fustigá-lo com seu verso de revolta. Um dia esse maldito pode engoli-lo mas o poema o salvará dessa corrosão. O poeta fica impresso com seu protesto e com seu alerta para aqueles que não ligam para as dimensões do ser.
No primeiro dos quatro poemas, "Elegia Breve", ele já aborda o precário equilíbrio que envolve seres e coisas. Logo em seguida, em "Quia pulvis es", à moda Augusto dos Anjos, ele já alerta o leitor para a inevitável finitude humana: "despe-te de tudo/ porque a terra chama/ e o útero profundo/ vai te devorar". Esse drama da meia idade, quando o efêmero do existir começa a mostrar suas garras, media o poema a ponto de, ao falar da "Praça antiga", o leitor sentir a presença de uma desilusão. Nesse poema ele retrata sombras, "horas mortas, eras mortas, dias mortos e ilusões perdidas". A praça é um festim de fantasmas, mesmo com a presença de alguns feirantes.
O coroamento desse quarteto de poemas sobre a morte está no último deles, "Os mortos". "Nos corredores da casa,/ navegam os mortos". Essa casa dos mortos possui sótãos e porões, todos repletos de mortos. Não fica só nisso, todos os outros compartimentos dessa casa estão repletos de mortos. Nos corredores, alpendres, varandas, ameias, seteiras, janelas, estantes e até nas taças da cristaleira navegam mortos. Essa casa bachelardiana tem raízes e uma ancestralidade que continua presente, mesmo depois de morta. "A casa é um mar, um pântano,/ um navio abandonado,/ uma geleira deserta".
A partir desse momento inicial elegíaco, o leitor fica curioso e passa a tecer mentalmente uma profissão de fé do autor. Entretanto isso não é necessário pois no poema "Poético", ele se revela como poeta: "eu escrevo com desespero,/ com angústia e dor e insônia e repulsa". Daí ele vai revelando os elementos da sua escritura: "vento nas areias submarinas, fogo nas florestas de pedra". O poeta termina essa confissão, concluindo: "Eu escrevo com vidro, com carvão e sol,/ com a boca junto ao coração, a mão junto à boca,/ com o cérebro só músculo/ quando escrevo meu corpo é só músculo,/ minha mente é só corpo".
Dimas Carvalho nesse livro está tão encantado em cantar a morte que na quinta parte, ao tratar das homenagens, ele privilegia poetas mortos. São elegias que vão de Francisco Carvalho, passando por Rilke e Augusto dos Anjos, até chegar a Vinícius de Morais. O poema para Vinícius, de tão bem urdido, pode-se considerar uma das suas belas homenagens neste ano do centenário de seu nascimento. Acontece que o ponto culminante dessas homenagens é "A Jorge de Lima". Nesse poema, o leitor se vê viajando por alguns labirintos de "Invenção de Orfeu".
Essa homenagem a Jorge de Lima pode ser considerada como culminância desse livro. Há imagens que só transcrevendo-as para gáudio do leitor. "O Poeta é um monge que habita as montanhas geladas do crepúsculo, (…) O Poeta é um querubim que ainda não foi nomeado. (…) O Poeta é um dínamo que gira velocíssimo sobre si mesmo. (…) O Poeta uiva seu grito para além das muralhas da cidadela". Vê-se assim que qualquer poema desse livro de Dimas Carvalho vem carregado de metáforas robustas, pesadas e sombrias, com intertextualidades de dois monstros sagrados da poesia brasileira: Jorge de Lima e Francisco Carvalho. Dimas é um poeta amadurecido, pronto para ser lido.
FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 28/05/13.
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