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  • Foto do escritorBatista de Lima

Fazia escuro em Tabocal

Batista de Lima



As notícias de Tabocal se engancharam pelos caminhos no correr dos dias, feito balseiro grande em riacho estreito. Nada de novas, só as velhas chegavam com fartum de mofo. E vinham tão repetidas que o cerzimento que lhes davam as enfeiavam ainda mais. Eram histórias de caras lambidas. Deu-se então que prorrompeu esse último grande inverno. Trovões, relâmpagos, coriscos e piracemas em desespero de desova. Chegava a baixar urubu em beira de córrego com tanto peixe buscando a serra. Curimatãs, piaus, traíras e cangatis querendo subir pedreira, correndo com medo d´água. Fazia escuro em Tabocal, de tanta nuvem negra amojada nos céus de março. O dia de São José passou de canoa para não se afogar e o sol tirou férias e viajou para a Escócia. Em Tabocal, só água, lama, mosquito, sapo cirandando pelas calçadas e o povo sem saber a quem rezar para conter as chuvas. Chegavam notícias dos primeiros arrombamentos de açudes com águas levando lavouras e cidades se afogando. Teve até o caso do açude da Seriqueira que recebeu tanta água que mesmo arrombado ainda sangrou três dias. Ali na Fuega, velho sítio de pé de serra, isso não preocupava. Eram dois os açudes dos herdeiros do coronel Demo. Açudes enormes, que nunca mostraram o fundo com tanta água que guardavam. Foram construídos em lombo de jegue. Ainda me lembro que eram cinqüenta jumentos carregando terra de setembro a novembro. Isso durante uns vinte anos. Sempre depois da safra de algodão e rapadura, o coronel mandava botar um pé por fora na parede de cada açude. Ali era garantia pelo resto dos tempos, podia vir água enraivecida. No último verão, no ano passado, secara tudo. Um desavisado caçador de mel de italiana, no pé da serra, deixou faísca virar tocha e o serra queimou três dias. Além de quarenta homens, até o Corpo de Bombeiros, da Telha, foi acionado para debelar o sinistro. A serra ficou calva. Perdeu sua trunfa de aroeiras, umburanas, anjicos e baraúnas. Mas perdeu, principalmente, os monturos de folhas secas que os séculos haviam poupado. A serra ficou suru. Quando as últimas chuvas chegaram, entraram no açude Muquém sem pedir licença nem pagamento de alvíssaras. Subiram de parede acima com poucos dias de inverno e o velho açude gemeu em sangria. Numa madrugada dos finais de março ouviu-se um estrondo, era o parto das águas. O Muquém arrombou-se. Desceu o turbilhão de sítio abaixo, levando o que tinha pela frente. De algumas casas de moradores só restaram os tijolos dos alicerces. Era gente correndo de serra acima com trouxas debaixo do braço. Foi então que se lembraram da vaca Estrela. A bichinha, na sua solteirice, nem amojada nem parida, ficara à noite no capim de planta, no baixio. Vaca predileta do seu dono, em tempo de bezerro novo, despejava, toda manhã, dez litros de espumoso leite nas cuias do fazendeiro. Mas quando o dia se vestiu de claro só havia água no espojador de Estrela. Era água para mais de cinco metros de barreira a barreira. Ao meio dia, no entanto, o velho açude não tinha mais o que vomitar e as terras foram aparecendo com as marcas da devastação nas barreiras banguelas. Em toda a extensão do sítio só escapou em pé, a velha mangueira do caroço comprido. Estava lá impávida, altaneira, escapada do dilúvio como a arca da salvação. E foi mesmo a salvação, pelo menos para a vaca, que teve sua solteirice arrastada de sítio abaixo, indo a desditada se enganchar, exatamente, onde dois enormes galhos daquela mangueira mãe faziam forquilha e receberam Estrela com aconchego materno. A água desceu e Estrela ficou desfrutando do colo que a mangueira lhe ofertou. De longe, pessoas viram algo branco sobre a árvore. Ao se aproximarem, pasmaram-se com a vaca em cima da mangueira, a cinco metros do chão como que confabulando com algumas mangas que restaram da safra. Apenas alguns arranhões se desenhavam na barriga da sortuda vaca. Vieram então homens de sítios vizinhos, não para ver o açude arrombado, nem o estrago nas canas. Todos queriam ver, pela primeira vez na vida, uma vaca trepada numa mangueira. Já passava do meio dia quando uma pequena multidão se aglomerava em torno da cena. Ninguém queria tirar a vaca dali antes que muita gente visse a imagem. Até a prefeita da cidade deslocou-se até o sítio e montada no ombro do marido para não sujar os pés de lama constatou a cena in loco. Alguns candidatos a vereador aproveitaram o ensejo para fazer pequenos comícios de petição e votos e oferecimento de braços para retirar a vaca de cima da árvore. Só lá pela tardinha, depois que muita gente gravou nas retinas aquele acontecimento surreal, é que a vaca voadora, como foi apelidada, começou a ser retirada do seu engancho. Foram duas horas de luta e muitos braços de corda para desalojar Estrela de perto do céu. Fazia escuro na região de Tabocal quando Estrela voltou à terra. Foram cinquenta homens para tirá-la do alto da mangueira e uns quinhentos para sustentar a história pela região, e parece que só eu para acreditar nela.

 

06/05/2008.

 

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