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Fala otimista

Batista de Lima


Ele já se acorda assoviando, às cinco da manhã, fazendo coro com os passarinhos e saudando o nascer do sol. Começa então aí sua cruzada contra os depressivos, ao extrair das pessoas suas migalhas de alegrias e transformá-las em conversas intermináveis. Essa terapia filantrópica respinga no seu texto e nos faz rir quando lemos suas histórias. Sua própria história de vida, narrada no prefácio, é algo de picaresco.

A literatura fala mais de tragédia que de comédia. Os clássicos literários estão eivados de cadáveres. Os tempos de guerra são cantados, os tempos de paz são esquecidos. O choro encanta, o riso é sem graça. As pessoas infelizes têm ombros para chorar e colo para aconchego, as felizes são olhadas de trivela. Por isso que um livro sorridente, desses que gargalham pelas entrelinhas, fica esquecido no local mais sombrio da nossa estante. Vez por outra vemos, pela lombada do volume, "Cândido ou o otimismo", de Voltaire; "A Megera Domada", de Shakespeare; e alguns livros de crônicas de Luís Fernando Veríssimo. É exatamente nesse ermo onde vamos colocar "Otimismo itinerante", de Roberto Gaspar. No entanto, é bom lê-lo antes.

Esse é o terceiro livro de Roberto. Antes escreveu uma narrativa biográfica sobre Bárbara de Alencar, motivado pelo fato de morar numa rua que possui o nome dessa heroína caririense. Talvez seja o único caso de um fortalezense que se preocupou em estudar a personalidade que dá nome à rua em que reside. Se cada rua fortalezense possuísse um Roberto Gaspar, teríamos quatro mil livros e conheceríamos a história desses desconhecidos que dão nomes às nossas quatro mil ruas. Outro livro seu é uma coletânea de crônicas, livro premiado em concurso literário, e que traz como título, "A menina do vic vaporub ou o amor na hora do ângelus". São narrativas do seu cotidiano de contador e inventor de histórias.

Roberto Gaspar é um contador de histórias. Tem assunto para centralizar as atenções de um grupo de pessoas por horas a fio. Mas o destaque principal de sua personalidade é a alegria. É um sorriso permanente, com a felicidade transpirando pelos seus poros. Por isso que esse seu livro é um louvor ao otimismo. Tudo vai dar certo. São 254 páginas de situações que vão dar certo. Depois há o trabalho gráfico muito bem feito da Editora do Autor, com ilustração de Gesse Colares. Há também o respaldo ortográfico e toda a preparação dos originais, trabalho de sua filha Adriana Markan, professora pós-graduada em Letras. O prefácio é de seu genro Paulo Fraga.

Como se vê, há um consórcio familiar para a edição desse livro. O prefácio do genro está bem feito, apesar de rotular o livro como sendo de crônicas, quando na verdade não são apenas crônicas pois há alguns contos, há causos e ainda há textos que não são nada disso, mas que são engraçados. O prefaciador fala na eloquência do autor com muita precisão. Fala do seu modo teatral, exagerado, contraditório, espontâneo e polêmico de se comunicar, mas sempre ressaltando seu enfático otimismo. Ele faz uma literatura antidepressiva, mas também leva uma vida de cultivo do bom humor e de conquista de amizades que redundam nessa alegria permanente.

Segundo seus circunstantes, ele já se acorda assoviando, às cinco da manhã, fazendo coro com os passarinhos e saudando o nascer do sol. Começa então aí sua cruzada contra os depressivos, ao extrair das pessoas suas migalhas de alegrias e transformá-las em conversas intermináveis. Essa terapia filantrópica respinga no seu texto e nos faz rir quando lemos suas histórias. Sua própria história de vida, narrada no prefácio, é algo de picaresco. Foi seminarista, vendedor de santos de barro, caçador de piranhas, animador de circo e de comício, industrial dos doces Florinda, fazendeiro de melões, corretor de imóveis, mas principalmente animador da vida.

Esse perfil não poderia passar incólume da sua escritura. A sua fala otimista ora o torna comediante, ora contador de causos, mas principalmente cronista. Mas cronista dos humildes, dos desvalidos, dos assalariados e de uma reca de criaturas que à primeira vista parecem infelizes mas que tiram do seu cotidiano motivações para serem felizes. Das situações aparentemente mais calamitosas ele extrai mensagens de humor e lições de bom viver. Seu texto não tem cadáveres, nem lágrimas. São histórias alegres, sem sangue, sem quebra de ossos, mas quebrando rotinas e estilhaçando depressões.

Esse seu estilo literário o conduz a enaltecer seu próprio comportamento ao receber o primeiro salário da vida e ter como atitude inicial, comprar uma bacia de picolés. Sua descontração literária o conduz logo em seguida a elogiar a vida surreal e artística de seu cunhado Rodolfo Markan, ou ocupar algumas páginas para contar o arrebatamento amoroso no convívio com sua mulher aos quarenta anos de casado. Myriam é musa, companheira e mãe de Andréa, Renata, Adriana e Beto, formando um quinteto inspirador que se elastece com o olhar fraterno que ele dispensa aos mais humildes, até aos desvalidos. O engraxate da praça é seu confidente mas também o são a rezadeira, o carpinteiro, a vendedora de óleo de coco, o pai de santo e o assaltante que ele regenera.

Esses personagens vão dando vida a suas histórias. Se são crônicas, contos ou causos, não importa. São gostosas, digeríveis, inusitadas. Algumas se definem quanto ao gênero. "Arca de Noé" é definitivamente uma crônica do bem viver. "Um collorido na ACI" é um causo engraçado. "A equilibrista do Circo Nerino" oscila entre conto e crônica. "A volta" é um belo conto que fica antológico se ele retirar aquele "P.S" do final, deixando-o aberto. É o melhor momento do livro. "Brasil é penta" é sua melhor crônica e o credencia a comentarista esportivo uma das pouquíssimas profissões que talvez não tenha exercido.

Todo esse taboleiro de oferendas escritas traz sabores variados. O leitor não quer saber de rótulos. O leitor quer o prazer do texto. Quer beber desse exemplo de Roberto Gaspar, dessa alegria latejante para ao final do livro concluir que com essa fala otimista a gente pode ter certeza de que a vida é bela.


jbatista@unifor.br

09/02/10.

 

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