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  • Foto do escritorBatista de Lima

Fala autêntica

Batista de Lima


Meu retrato na parede vive suando de medo da boca aberta do barro que a noite tenta esconder. Por isso que sobrevivo me alimentando de sonhos, comendo flores e verbos, fugindo deste naufrágio, agarrado com o que possuo de palavras amigas, amadas, sacrificadas que abrem a porta da horta, enfeitam o horto do porto e que quando um pouco opaco me ponho, me dão colo, calor e olor. Depois vazam de mim em redondilhas, dissipando dores e acenando amores.

Eu penso, você dispensa. Pedro anda de moto, Marcos compra cigarros. Chove em São Paulo, seca em Chaval. As gêmeas disputam a torta, Margarida margarina. O jornal sangra, a avó cose. Há letras no muro que ninguém entende, o polo derrete. Quintana no quintal, Clarice não esclarece.

Eu passo, você passeia. Antônio discursa, Izaura lacrimeja. Damião vive da bala, Aroldo foge do tiro. O peixe chora no aquário, o pássaro canta varais. O verão sua, o inverno chove. A noite pesa e a lua cúmplice. A nave nada na nuvem núbia. Você se cansa de procurar por nada e a vida arranha seus calcanhares. Você se lança correndo em busca e a vida cansa correndo atrás. Caçador que a caça caça, pescador que só pesca dor, de janeiro a outubro e muito maio.

Vou viver em Bogotá, você em Honolulu, rezaremos por Beirute. Navegaremos diários, pois a máquina que me leva é a mesma que te traz, tudo que pisca são olhos. Tudo que fica foge da ida. Tudo que volta foge da fuga. Navegar, navegante, boi de piranha, tempero. O cego que passou a ver pede para cegar de novo. Tiborna no bornal, água na peneira, tenho estado um pouco em tudo. No tropeço que tombei, tua mão se recolheu. Não esqueça que na ida é que a volta se constrói.

Nesse remendar de nuvens, nesse costurar das horas, lesmo. Toca em mim um vento norte, sete cruzes da ribeira, um fuso querendo fio, uma faca querendo corte, cabeçotes de cangalhas, um corisco amanhecido pelos galhos da umburana. Essa noite que me dissipa, com buzinas e sirenes me entoca nesta oca sem esperança nem divina.

Fui ouvir Taperoá certa vez em três de julho, cavaleiro em meu ginete a fundar um quinto império. No caminho só deserto, boca aberta, açude seco, uma estaca, uma grota e teu rastro quase restrito na areia do seco rio. A tarde estava para desenhos de chumbo e assembléias tanajuras. O borralho retendo as cinzas das sobras que vêm do dia.

Os fios trazem notícias de velhices que se acercam. Uma manhã quase tarde, uma mãe quase avó, sete buracos no chão, sete palmos gritando fome. Uma tarde quase pálida, uma pedra virada pó, um luar que já foi sol, um andar que só dá dó, um comer que só nos come.

Canta um rio Manoel de Barros, tosse a noite Manoel Bandeira, late um cão Andaluzia, gritam pedras Drummond de Andrade e José se alencarina. Sebastião, Sebastião, quero ir à guerra, não há mais guerra. Planto pomares, me falta água. E o tempo ruge nos quadriláteros. Na sala de espera, só despedidas. E muita gente emparedada em amarelos quadros âncoras. Minha nave nula, que farei das cinzas, deste corpo em vão? Que farei dos sonhos, das senhas e das sendas?

Certa noite, ave branca sentou no meu telhado. Veio de longe me dizer que para clarear a treva teria eu que me incendiar. Outra vez a lua cheia, sem dizer, fez feriado e a escuridão me ensinou a ver melhor as claridades. Esta terra lacerada me ensinou a comer sol e a ver Deus necessitado servindo de guia de cego. Esta terra ressecada me deu um pai que não chora e uma mãe que tece afetos nos teares da memória. Deu-me galos nos terreiros, costurando madrugadas, caminhos absurdos onde as curvas se regalam e silêncios tão gritantes que a voz do paraíso é quem mais me faz barulho.

Nesta terra vi legumes que produziram palavras que me vieram dizer como inútil é fazer versos e que a loucura da solidão habita páginas brancas. Ao mesmo tempo disseram que na curva da esperança, a vida se finge de viva e a morte esfinge é quem ladra. Desacostumado do amor, me canso de olhar as unhas na inutilidade dos gestos.

Mar de mastros, mar de astros, mar de ostras e claustros, onde os planetas mergulham e as estrelas cirandam, por que tu guardas a solução dos enigmas de que a vida se faz? Na garupa dos cavalos marinhos, marinheiros, marinhagens, maral e terral mesmo sem sair da praia tentarei falar ao rei que as profundezas escondem.

Quanto ao rio que transporto, sem jeito de botar água, tem um dorso de areia e me fala de coisas mágicas que nas margens emudecem. Este rio que transporto, nascido em Jerusalém, tortura com sonhos servidos em pratos feitos de ferro. Por isso que minha sombra ferida foi vista de mala e cuia no ombro, gritando a uma parede tapada que enviuvara de mim. Foi assim que me trajei, na noite de Santa Luzia, e numa colação de grau, com distinção e louvor, ganhei diploma de triste.

Meu retrato na parede vive suando de medo da boca aberta do barro que a noite tenta esconder. Por isso que sobrevivo me alimentando de sonhos, comendo flores e verbos, fugindo deste naufrágio, agarrado com o que possuo de palavras amigas, amadas, sacrificadas que abrem a porta da horta, enfeitam o horto do porto e que quando um pouco opaco me ponho, me dão colo, calor e olor. Depois vazam de mim em redondilhas, dissipando dores e acenando amores. Vasto, vasto mundo, onde está aquele cofre onde emparedei certo menino que um dia transportei com os arroubos da ventania, com a força do rio corrente, com a camisa aberta ao peito, querendo pegar o céu que encostava na serra? Onde está aquele menino que lateja aqui no peito, gritando que foi esquecido?


jbatista@unifor.br

15/06/10.

 

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