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Espólio de um limoeirense

Batista de Lima


Espólio de sertanejo se compõe de vacas leiteiras, paiois de arroz, jiraus de milho e tubos de feijão. Às vezes, arrobas de algodão, um engenho, uma farinhada e muita cera de carnaúba. Poderia ser esse o espólio de Edmar Freitas. Acontece que tudo isso e algo mais ele colocou numa botija de palavras e simplesmente intitulou de "Espólio". Para desvendar o mistério desse tesouro é preciso que se leiam os trinta poemas que ele pôs nessa coletânea com temáticas sociais, coisas do coração e revelações existenciais. Entre Limoeiro do Norte e Messejana ele vai semeando versos e cismando mundos. Seu conterrâneo poeta e acadêmico Luciano Maia nomeia sua produção literária de "poesia visitada de sutis reminiscências da pátria da infância". Isso comprova que o poeta, vá onde vá, carrega aos ombros seu mundo primeiro. Daí que não é novidade que Edmar Freitas de tanto amar esse torrão natal, mesmo vindo morar na Capital, escolheu o bairro mais próximo de sua pátria carnaubenta. Veio habitar Messejana e aprender a amá-la em um movimento oposto ao que fizera José de Alencar ao se retirar dessa terra com menos de dez anos de idade.

Agora, Edmar, já amadurecido, deixa de herança aos descrentes, sua maneira de enganar os dias, enquanto decanta para cantar o peso das ausências. Tenta deter as madrugadas, porque elas são a infância do tempo que teima em plantar solidão nas beiradas das estradas e nos costados da alma. Aos cinquenta e oito anos de idade, adiciona a tudo isso a garimpagem que executa em torno do mistério das palavras. Um pouco de poesia para regar a saudade de ontem consegue abrir um sol diferente para o novo dia que vai despontar.

Edmar Freitas é poeta, "não há força que impeça,/ Nem há medida que meça". Sua fala repete os ecos ouvidos do sertão, a partir da cantoria do seu pai, "em forma de aboio, / tangendo as estrelas / como sendo seu gado que nunca teve". Quanto ao menino que guarda em si, esse continua "brincando no terreiro / até a luz da lua ficar tonta / anunciando que é hora de dormir". Isso tudo acontece enquanto o aracati vai deixando sua noite pelo avesso. Sua voz de poeta telúrico incendeia da aurora de janeiro à magia das carnaubeiras, passando pelo rubro mistério do anoitecer. Não é surpresa, pois, que sua casa, ornada pela lua, seja moldada pela mão caprichosa do vento. Essa sua paixão pela lua, leva-o, ao mirá-la, a ouvir sussurros de ternura, feito embalos de infância.

Esses sussurros são lições do milenar Aracati, um vento benfazejo que o mar sopra para amenizar o calor do sertão. Em Limoeiro essa brisa se faz presente, quando a tarde, no auge de sua teimosia, alcança sua culminância de calor e sol. Ele açoita os oitões das casas, refrigera as calçadas quentes e cicia nas palmas das carnaubeiras numa sinfonia que só a natureza consegue executar. Esse fenômeno incorpora-se tanto no existir desse limoeirense poeta, que mesmo habitando na distante Messejana, ele revela: "Ainda venta toda noite no meu quarto / Pelas frestas abertas do passado". O vento da memória é uma porta aberta para o retorno ao latifúndio temático do poeta.

É por isso que a tarde entra também na sua poética como retirante do cenário do dia. Essa entrada se reveste de uma atmosfera fúnebre, a ponto do autor revelar que: "Veio a tarde / Em tom alaranjado, / Trajando a veste / Usual dos funerais / A visitar o silêncio / Dos quintais / À procura infindável / De uma prece". Há, portanto, um tom elegíaco impregnando seus poemas que leva o leitor a refletir sobre o efêmero da existência. Uma das entidades que ameniza esse clima gris é a presença da lua. O luar é permanente companhia. Se não é solução, ameniza a solidão e dá um sentido a esse estar no mundo.

Essa noturnidade poética de Edmar Freitas se contrapõe a uma diuturnidade marcada pela racionalidade do trabalho de professor, do poeta. Do choque entre essas duas personas de um mesmo ser, brota uma poesia lírica, de verso livre, desembocando, em alguns momentos, para uma catarse reveladora. Daí que em boa parte de sua escritura o autor revela-se como um saudosista. "O que fazer com a saudade rotineira / Que chega sempre no fim da madrugada, / Quando só resta o silêncio na estrada / E a solidão de uma noite inteira?". Essa saudade termina por se tornar um lugar de grandes e poéticas esperas.

Essa saudade leva também a um desencanto diante do tempo de agora. É um desencanto diante do pouco caso que se faz da poesia e dos poetas. "A noite / Anda escassa de poetas. / Não há motivos / Para contemplar a lua / Nem contar estrelas". Esse desencanto contamina também outras atividades humanas que foram perdendo suas características com o passar dos tempos. O sertão não é o mesmo e o sertanejo estilizado, produto do celular, da parabólica e da internet perdeu seus caracteres de antes. "Os chapéus dos trabalhadores / Já não se mantêm / Em suas cabeças". Mesmo assim, seu sonho de menino ainda é "Um sitiozinho / À beira do Jaguaribe / E um catavento americano / Com a seguinte inscrição / ´Vila da saudade´ / O resto seria saldo".

Edmar Freitas nesse seu novo livro consegue estabelecer seu estilo e sua temática que já vinham dando sinais de estruturação em escritos anteriores. Ele é lírico, saudosista, com uma dose bem acentuada de telurismo, e opera um retorno a um paraíso perdido, que é o sertão da infância. Nesse retorno, ele elege o vento, transfigurado no aracati que o mar sopra pelo vale do rio Jaguaribe. Além do vento, há um pendor pela tarde, como marca de um desencanto diante das desfigurações sofridas pelo sertão da infância. Há ainda o mistério da noite e uma liturgia de esperas. O poeta espera, e é essa esperança que o mantém ativo. É, no entanto, sua poesia carregada de lirismo e de esperas que contamina o leitor de otimismo. Termina também esse leitor por encontrar um sentido para a vida.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 29/05/12.


 

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