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Epístola ao distante primo


Batista de Lima




Estimado Nicanor, tenho ido muito ao espelho, ultimamente. É que ao sentir saudades de meu pai, olho meu rosto e é ele que aparece. Da mesma forma, cada vez que vejo minha irmã, que mora aqui perto, é minha mãe que aparece. Aqueles amigos com quem jogávamos bola estão todos pesados de bens e ocupações. Ontem assisti a um documentário do Carlos Normando sobre um misto que fazia a linha Limoeiro/Mossoró e me lembrei de João Dionísio. Não dele próprio e sim do misto com que ele nos levava ao Cariri.

Ouvi dizer que asfaltaram a estrada e lhe deram o nome do Padre. Quero fazer esse percurso de novo e parar no São Pedro para comprar pão-de-ló e pegar aquele frio nas costas. Quero avistar lá longe a serra do Araripe com aqueles braços abertos para o abraço de quem chega. Ah! Sim. Quero sentir no Crato aquele cheiro de pequi. Também ajudarei a prender o ladrão que roubou o Pau do Guarda. Isso tudo depois que visitar o Seminário Sagrada Família e assistir a uma missa do Padre Frederico, na Igreja de São Vicente.

Certa vez estivemos por lá em paga de promessa. Fomos a pé e voltamos com rosários de coco e doces de buriti. Meu pai soltou fogos e minha mãe puxou as rezas. Na volta eu perguntei a ela por que tive de fazer a primeira comunhão com chinelos de papelão. Foi numa casa do sítio, em missa do Padre Alzir. Todo mundo olhava para meus pés. Até Patativa olhou para meus pés, muitos anos depois na Exposição do Crato. Ainda ontem andando aqui na rua os transeuntes olhavam para meus pés. Agora olho para eles e vejo os pés de meu pai, de meu avô. E meus sapatos ao lado parecem chinelos de papelão.

Caro primo, estou te chamando de Nicanor, mas não sei se ainda é esse o teu nome, pois o meu não é mais aquele que sempre fora antes do papelão, quando descalço perdi as unhas. Aliás, perdi também o caminho de volta. Não sei se devo ir pela esquerda ou pela direita. Está tudo igual. Não há placa de orientação. Por isso, estou te escrevendo, para ver se me encontras por aí. Por aqui tenho procurado e não me encontro. Já escrevi para outros amigos mas eles não se lembram mais dos chinelos de papelão, nem do dia em que fui mordido de cobra. Não há cheiro de milharal verde botando espigas. Aquele cheiro de mel queimado que o engenho presenteava-nos, eles não confirmam sua existência, nem a garapa doida, nem a tiborna.

Por tudo isso resolvi te escrever neste birô, por trás da grade de ferro que circunda meu gabinete. Daqui estou agora observando uma rolinha caldo-de-feijão, que do telhado ao lado, a poucos metros me observa perscrutadora. Ela traz notícias que não sei mais decifrar. Ela me conta coisas que desaprendi a entender. Apenas deduzo que ela quer dizer que encontrou vestígios de mim por aí. Faz horas que ela insiste que eu a acompanhe no seu voo. Ela tenta me contar coisas bonitas, mas eu desaprendi sua língua. Se ela chegar por aí, Nicanor, vê se decifras a mensagem dela. Há muito tempo desaprendi a língua dos passarinhos.

Outros esquecimentos também têm me atacado. Esqueci o cheiro da chuva, despenteei os cabelos das espigas verdes, deixei faltar fogo na fornalha do engenho e perdi o jeito esquisito de dobrar esquinas. Tenho tido saudades do borralho. Mas saudades mesmo tenho é do monturo. Como era gostoso desenterrar cacos e compor os pratos que nosso avós quebraram. Daqui, por trás dessa janela de grades, vejo muita coisa quebrada, gritando por remédios. Esta minha cidade, Nicanor, é minha demência. É uma onça enorme que me engole todo dia e me devolve mastigado.

Por aqui, primo velho, o céu não tem mais estrela. Lua só vejo no papel. Há sempre uma parede pela minha frente. Quando não é uma parede, são portões com cadeados. Nunca mais avistei lonjuras. Tudo está muito perto, tão perto que perco meus braços. As pernas estou mandando de volta em busca dos longes daí. Que elas voltem a atravessar riachos, como aquele que virou correnteza numa tarde de inverno em que melancias nadaram. Aquela correnteza levou nosso tio cadete e devolveu general. As coisas são assim mesmo, precipitam-se.

Estimado primo, teu irmão caçula fundou uma igreja, e anda em carro zero, cobrando o quinto. Começou pregando na calçada da casa, hoje possui um templo refrigerado. Na visita que me fez, falou dos pecados que carrego e levou minhas camisas puídas. Não quis levar meus chinelos de papelão, nem um velho fuso que guardo em um novelo de fios de algodão. Não quis levar uma disciplina que guardo desde que Arlindo Geraldo me presenteou, quando deixou de ser penitente.

Nesta oportunidade em que te escrevo, gostaria que tu me providenciasses uns alfenins das canas da lagoa. Pode mandar junto uma cuia de coité, uma cabaça-de-colo, um tabaqueiro e um quicé de picar fumo. Não sei para que quero isso, mas gostaria de ver nessas coisas, as digitais do tempo com memórias ternurosas. Manda pra mim o cheiro do café torrado com rapadura, um relâmpago compassado, na baixinha do nascente, e aqueles sonhos esgarçados que por aí andei deixando. Pode ser que com tudo isso, eu consiga encontrar vestígios de mim, para eu recompor esse garoto que fui mas que se perdeu por aí.


25/09/2012





 






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