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Entre palavras de Hermínia Lima


Batista de Lima


A poesia lírica é muito reveladora. É o gênero literário em que mais emerge a fala autêntica do seu autor. Por isso que é uma janela da alma para que o analista adentre na estrutura profunda do poeta. A poesia lírica se torna assim o gênero literário mais convincente no devassar de uma trilha biográfica. O plano de expressão se torna apenas uma pele facilmente rompida pelo plano de conteúdo que explode viçoso, trazendo do inconsciente o que ele tem armazenado. Por isso que poesia só engana os incautos, aqueles que nadam e nadam mas não mergulham.

Isso posto, é preciso cuidado ao ler os poemas de Hermínia Lima. Esse seu livro, "Sendas do Sacrário", é uma armadilha. Lançado recentemente pela Imprece, com projeto gráfico de Geraldo Jesuíno e apresentação de Aíla Sampaio, ele possui duas faces. Uma é processada, ardilosa e aparente. A outra face é autêntica e quase secreta. O seu ardil é querer mostrar-se ao leitor como um ser feito de sensualidade e movido por ardências. A sua autenticidade no lado sombrio do texto é o retrato de uma grande solidão, de uma angústia mascarada no verso, escorada numa pele que precisa ser rompida.

Hermínia Lima pode ser lida como quem lê Hilda Hilst, sem se fixar apenas no erótico, mas a partir dele extrair uma apologia à solidão. É preciso ver a erotização da modernidade como uma máscara a encobrir uma solidão latente, o verdadeiro mal-estar da civilização. Estamos todos sós no meio de uma multidão a quem apelamos para que nos sinta, nos veja, nos toque, nos possua. As academias estão cheias, e as butiques também, de solitários, criadores de peles e mais peles para encobrir abismos incutidos. Ainda bem que Hermínia Lima procurou outro tipo de aparelho para malhar, a palavra.

O avatar de Hermínia é a palavra. Seu erotismo se fixa no verbo, no princípio de tudo. Ela é uma "gazela solta sobre o papel". A página branca é o espojador das suas ardências. Toda a latência sensual se opera na e pela palavra. O corpo é o signo verbal, o resto é estratégia para encobrir uma certa angústia que ela tenta mascarar. Sua pele esta na pele das palavras. É uma amazona garimpando palavras para se tornar cada vez mais um ser linguístico. Coincidentemente ela está para concluir seu doutoramento em Linguística na UFC. Ela sabe perfeitamente que nossas palavras primitivamente eram depositárias de sinestesias. O sensorial alicerçava a fala. Com o tempo é que nos tornamos radicalmente arbitrários.

Foi muito acertadamente que o poeta e acadêmico Virgílio Maia, quando leu os originais do livro, sugeriu o título "Entrepalavras". As palavras estão, nesse livro, liberadas para se desnudarem. Equívoco é, pois, pensar que é a autora que se desnuda. Ela desnuda o signo verbal. Por isso que a culminância poética do livro está na terceira e última parte da coletânea, a partir da epígrafe de Adriano Espínola que é chave para explicar o conjunto dos poemas: "Poesia é viagem, é linguagem / em estado de aventura". O poema "Linguagem", da página 80, (para Roland Barthes) é uma mistura de prazer do texto com fragmento de um discurso amoroso, o que o torna antológico.

Nesse poema ela sente "impulsivo o desejo de lamber o texto, / e esfregá-lo sobre a pele feito bálsamo. / Vestir-se com o tecido macio / da adjetivação suave..." Evitando pisar o signo, ela caminha em frases. "equilibrando-se sobre pontos, / vírgulas e reticências". Tudo isso, para encontrar-se "no aconchego / dos espaços entre palavras, / no mistério decifrável do não-dito". Esse poema mostra o arfar das frases pelos poros centrados na pontuação. O ritmo do texto vem com o pulsar do coração, em perfeita sintonia. O discurso amoroso centrado no eu lírico dá emotividade à linguagem.

Essa intimidade com o texto, marcada pela sensualidade, é produto da "santa e profana habilidade / de tocar com as palavras!" A autora, nessa volúpia verbal, torna-se gazela e salta "sobre o papel, / seguindo as rápidas passadas do texto". Amazona, ela caça palavras. Capturadas essas palavras e devidamente cevadas, são servidas ao leitor numa esbórnia em que mesa e cama se completam. Nesse ritual, os intervalos são marcados por silêncios em que o não dito diz muitas vezes mais que o dito.

Esse silêncio "sabe o que não sabemos dizer". Esse silêncio está instalado entre palavras. Entre palavras se instaura Hermínia Lima, sacralizando a presença do leitor. Suas manhas e artimanhas ampliam o sentido do verso. Dizer não é suficiente, é preciso provocar o leitor, ao provocar as palavras. É por isso que esse seu mais recente livro, o terceiro, traz o caminho poético mais largo para ser trilhado nos próximos livros. É a metalinguagem que lhe estira as mãos súplices como a lhe dizer que as palavras lhe cativam. Sua musculatura poética está se oferecendo nessa academia em que o aparelho principal para exercitar está entre palavras.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 22/10/13.


 

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