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Entre a pele e o abismo

Batista de Lima


Janela da alma é como têm sido chamados os olhos. Há quem os chame de portal dos sonhos. O certo é que, pelos olhos, a objetividade do exterior de cada um de nós produz subjetividades no nosso interior. Os olhos pescam o alimento da alma. Entretanto, no nosso mundo exterior há uma diversidade tão abundante de signos que corremos o risco de deslizarmos nessa parafernália produzida pela cultura, sem captarmos aquilo que nos é essencial. É como um garoto em um enorme parque de diversões. Ele corre de um lado para outro sem saber qual o melhor brinquedo e termina por não ocupar nenhum.

Os olhos se recusam na escolha, diante de um amontoado indiscriminado de produtos. É preciso muito esforço para se detectar um detalhe. Há uma multidão que quer entrar de uma só vez pela porta da alma, o que provoca um congestionamento mental no indivíduo. Essa pane mental prejudica a subjetividade. O garoto, diante do diverso mundo on line, não consegue se abismar porque a passagem da pele para o abismo não consegue ser seletiva. O portal da alma se põe entre esses dois momentos distintos da percepção. Na estrutura de superfície, lateja um mundo artificial, modificado, retilíneo, para ser digerido por uma estrutura profunda sem linhas definidas.

A própria estrutura física do olho já vem com linhas curvas, como um prenúncio de que dali em diante, nas profundezas do nosso mundo interior, as linhas e contornos são prioritariamente arredondados. Assim também é a natureza, na sua situação de origem, pois prevalecem ali as formas arredondadas. Até ao sermos gerados, nosso mundo primeiro, o útero, possui formas arredondadas, o que acontece também com os pássaros nos seus ovos. Acontece que ao nascermos, um mundo retilíneo nos é imposto, com quadrados e retângulos, a partir do berço em que nos jogam. Os pássaros saem de um ovo que se quebra em dois e vão para o ninho que é a imagem da banda de um ovo.

O filhote de passarinho fica ali, numa banda de ovo, o ninho, olhando para o firmamento, imensa banda arredondada de um imenso ovo de proteção. O bebê, no seu berço, fixa os olhos no teto esquadrinhado que o separa do mundo lá de fora bem mais natural. Do ninho vem o canto, do berço vem o choro da revolta. Até as artes atuais têm privilegiado formas e ambientes fechados e retilíneos. O próprio cinema, talvez a mais completa delas, tem esquecido as vastas paisagens para se recolher aos ambientes fechados. O cinema atual tem deixado de lado a vastidão onde nosso sonho se amplia muito mais.

Por isso que um dos méritos do gênio cinematográfico John Ford reside no fato de que seus filmes privilegiam vastidões. Diferentemente dos cineastas atuais que privilegiam cenários claustrofóbicos onde nossos sonhos se enclausuram. Nossos sonhos precisam de vastidões. Eles se ampliam em amplidões, planícies com serras longe. O olhar precisa ir até onde a vista alcança. Depois ir muito mais além, porque outras dimensões mais vastas nós imaginamos para além de onde a vista alcança. Uma amplidão termina por gerar muitas outras bem maiores. É como se nossos abismos viessem pegar sol nas superfícies.

Importante, no entanto, é não esquecermos de mirar bem esse portal que os olhos representam. É que eles retratam bem o que está alojado nos abismos de cada um. Nossos abismos são a metáfora do ser. E mesmo que o corpo fale e grite metonimicamente, é pelos olhos que borbulham com mais ênfase as subjetividades. É por isso que muitas vezes o olhar do outro nos apacenta porque vem carregado de uma paz interior. Por outro lado pode acontecer o contrário, esse olhar pode vir faiscando de distúrbios interiores que nos atingem negativamente. Assim, uma forma de conhecer bem nosso circunstante é rastrear no seu olhar aquilo que seus abismos retêm.

Esses abismos são sombrios e nos incomodam porque nos acostumamos a valorizar apenas aquilo que incendeia nossos olhos. Esses olhos tão úteis para captar luzes não se prestam para auscultar sombras. Por isso que o escuro nos assombra. É que nos viciamos com o claro. Entretanto, há, em nós, lanternas para clarear nossos abismos. A meditação é um olhar que se volta em busca dos contornos do vasto mundo da subjetividade que carregamos. Quando analisamos uma obra de arte vemos perfeitamente vestígios de um mundo metafórico que o artista foi buscar nos seus subterrâneos. Sua primitiva visão externa foi depurada e fermentada na cozinha do seu interior.

Assim, é preciso saber olhar para se avistar o voo longínquo de uma ave e o crescimento lento da árvore. O desabrochar de uma flor pode ser captado se a olharmos sem a pressa das urgências. A lágrima de revolta do peixe preso no aquário é perfeitamente captada se a observarmos com o potencial de nossa janela da alma. Daí não ser suficiente apenas abrir os olhos, mas colocar a seu serviço as lunetas que transportamos tão bem guardadas já que não treinamos sua utilização. Por isso que o artista se torna um transformador. Afinal ele põe a seu serviço esses faróis que o vasto mundo dos sonhos acumula nas suas estepes. É por isso que ele vê as coisas de forma diferente. Por fim, quero ver melhor esse mundo que me cerca, nem que para isso tenha que fechar os olhos. Pois tenho olhos que se postam na ponta dos dedos, no nariz, nos ouvidos e até na boca. E são olhos que também veem lonjuras que não descortino. Afinal, eles às vezes se voltam para captar outra dimensão das coisas que estão muito além e principalmente muito aquém de cada coisa. Por isso tento navegar contra essa correnteza que nos leva para a frente como se tudo não tivesse sua nascente. O que quero mesmo é me postar entre a pele e o abismo como porteiro desse grande fluxo que transfigura e transver comboios de especiarias que tenho guardado nos porões dessa imensurável construção, que não conheço direito, apesar de transportá-la em todos os momentos do existir.


jbatista@unifor.br

01/11/11.

 

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