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  • Foto do escritorBatista de Lima

Entrando no mapa

Batista de Lima


Minha terra tem gerânios, genipapos e gerôncios pois morar por aqui é viver sem muita pressa, pois aqui todos sabem que a pressa com que se vive, vira pressa com que se morre. Por falar nessa coisa de morrer, aqui a gente chora quando outrem chega a partir. Não é um choro contido, pois é choro que mesmo longe, não deixa de ser ouvido.

Minha Itabira não tem tantas pedras, apenas umas duas pedreiras descarnadas, no longe da Serra das Almécegas. Minha fazenda não foi destruída pelas companhias inglesas de mineração, mas destruíram o canavial e fecharam o engenho que adocicava a vida. Agora tudo é capim, e os retratos da parede doem cada dia mais, e como doem. Não tenho tantas pedras no meio do caminho mas tenho levado topadas nos seixos quebradores de unhas. Tenho levado topadas nas pedras que a vida me põe no caminho.

Minha Mancha tem também seus cavaleiros que cavalgam rocinantes. Tem dulcineias de olhos tristes, tem moinhos que moem milho, pilões de pilar a dois. Tem escudeiros sem escudos e sonhos arreiados, que só trotam as distâncias do riacho ao pé da serra. Tem quixotes que escavam nuvens bem aquém do horizonte. Tem uns burrinhos quase mortos, comendo gravetos e sabugos e umas vaquinhas tão raquíticas que mal carregam os chocalhos, entre moitas que perderam as folhas. Minha Mancha tem muito sol e pouca chuva, muitas bocas e poucos dentes.

Minha terra tem carnaubeiras onde passarinho não canta, pois as aves que aqui gorjeiam, gostam mais das goiabeiras, ou mangueiras carregadas. Minhas gerais tem suas veredas que são chamadas caminhos. E os sertões daqui são iguais aos sertões que lá mourejam. Afinal, como acontece por lá, o sertão maior daqui é o que mora, grita e chora bem dentro do nosso coração.

Meu Recife tosse à noite quando me banho à tarde nos açudes da memória. Mas a Irene daqui é a mesma Irene que é santa lá. Quando as duas ao céu chegarem vai São Pedro festejar. Os sinos, que aqui bimbalam, são sinos também de Belém. Na minha Pasárgada também sou rei pois essa coisa de reinado pode andar criando ninho onde a gente planta sonho. Tenho um sonho quintanar que florece a cada chuva pois o amor só brota bem se plantado no molhado.

O meu rio é de abril, nunca porém de janeiro. E por detrás da vidraça, também sei olhar o que lá fora me consome. Aqui não tem iracemas mas tem moças sonhadoras por emboabas por chegar. Cavaleiros chegam por jangadas nas águas de açudes calmos onde a nudez das moças se banha para alegria dos peixes. E Duília se reproduz nas procissões do padroeiro. E toda Maria é Moura e toda Dôra é Doralina, mas nenhuma Luzia é Homem. Há muitas que se chamam Fideralina, outras Dersulina, outras Idalina, nenhuma com olhos de ressaca, pois as águas que aqui nos chegam não tem ondas como as daí.

Minha terra tem gerânios, genipapos e gerôncios pois morar por aqui é viver sem muita pressa, pois aqui todos sabem que a pressa com que se vive, vira pressa com que se morre. Por falar nessa coisa de morrer, aqui a gente chora quando outrem chega a partir. Não é um choro contido, pois é choro que mesmo longe, não deixa de ser ouvido. Por aqui não sei dizer até quando vou viver com os mistérios de Clarice, com as dores de Dolores, com a volúpia de Hilda, com a saudade de Dalva e com os olhos de Maísa.

Minha casa tem natércias e vasa com suas histórias por todas as suas frechas. Minha Lolita centenária acaba de perder os dentes, esqueceu a paciência e tenta se recolher a um convento de freiras. Verdes canaviais pendoados, da minha terra natal, serenai as verdes canas para que o engenho fumegante não seja assombro mas apenas transforme tudo no ouro da rapadura. Doce saudade das almanjarras, doce suor das caldeiras, doce garapa escorrente, é difícil pensar moagens que não adociquem a alma. Menino de engenho, também sei o que é tiborna, bagaceira, fornalha e mel queimado.

Minha Macondo é aqui com generais derrotados, mas cada Sebastião vem na esperança montado. Vamos fundar nosso reino, não importa que império seja. Nesse reino a ser fundado, cada palavra terá seu ganho, pois todas se empregarão com suas devidas funções. Cada palavra será claridade sobre abismo, uma presença no mapa da geografia da vida. Se essa palavra faltar vou à sucata do Manuel, aquele de tantos Barros que fundou o Pantanal. Vou ao Carvalho centauro, pastor de verbos maduros, buscar alento e sopro para animar certas frases que teimam em não dizer nada.

Minha partida não será triste pois daqui não tiro o pé. Quem quiser que cante lá pois meu canto vai de cá. Sei muito bem que aqui tem coisa que preciso descobrir. São mistérios que se montam nas cangalhas do meu ser, são perguntas que não param de solicitar por respostas.

Minha mãe, meu cafuné, fez meu pai lacrimejar, ensinou a todos nós, a arte de bem chorar, depois do caminho andado, foi em frente nos esperar. São coisas como partidas que as palavras se negam a mostrar suas saídas. São portas que ainda se fecham e precisam ser abertas mas que guardam seus segredos como mapas que se debruçam sob nosso desconhecer.


jbatista@unifor.br

31/08/10.

 

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