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Em busca do espojadouro perdido


Batista de Lima


Janeiro era um mês que não sossegava. Julho era um mês que não tinha fim. Janeiro era de São Sebastião; julho, das rapaduras. Os pesadelos só existiam enquanto durava o sono. E assim se passavam os anos. Era tudo tão bonito que era um desperdício. A única taxa existente era para pagar alvíssaras. A maior produção era de meninos tristes. Um dia chegaram postes golfando luzes que incendiaram as casas. Foi então que a escuridão fugiu pela porta dos fundos para não morrer de inanição. A lua revoltou-se com tanta claridade e escondeu-se por trás da serra. E o sol anda de olho muito aberto.

Havia galinhas que ciscavam no terreiro e galos que costuravam a madrugada nas fraldas do quebrar da barra. Um dia chegaram uns frangos brancos já abatidos e conservados no gelo. O canto do galo amofinou e as galinhas partiram por falta de música. A vaca preta enchia a cuia de branco e espumoso leite, mas quando um novo leite chegou encaixado, tiraram a nata e botaram o preço com validade marcada. O curral ficou de porteira aberta, como uma boca que se abriu pasmada. Acabou-se o berro, o chocalho e o pasto. As chuvas que enchiam os córregos tiraram férias e viajaram para Porto Alegre.

As casas possuíam seus potes que conversavam entre si, o dia inteiro, menos quando o canecão lhes entrava pela boca, tirando a concentração. As redes morcegavam durante o dia nos armadores, e à noite acolhiam o ronco dos que dormiam. Havia um ronco que vinha da serra. Eram riachos protestando contra as águas da chuva que teimavam em partir sem volta. Eram águas com manias de rios e sonhos de mares. Quando a semana era santa, penitentes cortavam noites trevadas com disciplinas nas costas. Eram cantos tristes que acordavam meninos e levavam rapaduras e cereais como esmolas e promessas de jejuns.

No São João tinha fogueira e pão de arroz feito de véspera. Era sinal de que estava em tempo de preparar o engenho e começar a moagem. Era tempo de imagens brancas que se alastravam para além dos olhos. Eram pendões de cana dando brancura no canavial. Era brancura de algodão atapetando as capoeiras e as garças no recreio das represas dos açudes. Era tempo dos noivados dependendo do tamanho da safra. As vacas davam mais leite porque o pasto era mais farto. Os pássaros faziam a festa por cima dos pés de ata. Chegavam cartas de longe com mais selos que notícias, avisando da chegada de quem vinha passar as férias. Julho ficou mês que não tem fim, com rapadura e batida, garapa, mel e alfenim.

Nas noites de todos os dias, havia costumes antigos, pois filhos, genros e netos, mal terminava o dia, de lamparina na mão, chegavam com notícias novas, na casa do pai, sogro e avô. Eram homens na calçada, com histórias de valentia e mulheres tapiocando no fogão movido a lenha. Lá no final do terreiro, os meninos com seus gritos, espantavam a escuridão. Numa sala mais interna, as meninas com seus cantos, cantavam algumas cirandas, com suas bonecas de pano. Na cozinha, as mulheres não esqueciam o café, que antes de ficar pronto já espalhava seu cheiro nos corredores da casa. Se um cachorro latisse, na direção da cancela, era alguém que ia passar, ou que vinha para ficar. Se passasse tinha "boa noite", se ficasse tinha notícias, dessas que chegam novinhas para o resto da noitada.

A moagem, todos os anos, começada no mês de julho, era a alegria dos meninos e o fim do canavial nos facões dos cortadores. Cambiteiros, com seus burros, traziam as canas cortadas, ainda vestidas de palhas, como se mortalhas fossem. Os tombadores, sem pena, tiravam as vestes das canas antes que o tronqueiro verdugo, aos feixes, jogasse todas aos dentes que as moendas tinham. Ficava bagaço de um lado e a garapa de outro, escorrendo feito sangue em busca das caldeiras quentes. Naquele inferno de quentura, garapa virava mel, caldeiras mandavam o tacho transformá-lo em rapadura. Nas gamelas terminava o suplício daquelas canas que um dia enfeitaram o sítio com a brancura dos pendões.

Fevereiro era um mês anão, com menos dias que os outros, parecia um palmo mais baixo. Falavam em carnaval que acontecia lá longe como coisa do diabo. Março era mês limite, chovia ou não chovia, no dia de São José. Abril com Semana Santa era mês de contrição. Era de roçar caminhos. Era de cobrir os santos, com aquele pano marrom, tudo se preparando para a semana santificada. Tinha penitente na quarta feira, jejum na quinta e na sexta, com espera de galo no meio, e um sábado de alegria. Tinha bacalhau na mesa, com o primeiro feijão verde do lastro, o maxixe da bagaceira, a macaxeira da represa, o leite da vaca parida nas primeiras chuvas do inverno.

Maio era mês de Maria, das marias e das mães sem presentes. Junho era de fogueiras, agosto do desgosto da primeira segunda-feira. De setembro em diante era uma descida sem freio em busca do final do ano. Nem o Ford de Felinto, carregado de algodão, com a barra da direção quebrada, descia ladeiras tão rápido quanto esses meses finais. Era um ir sempre para a frente como se alguma coisa boa esperava além. Hoje, porém, que esse além não chegou, dá uma precondia travosa quando se olha para trás e se observa que naquele espojadouro perdido morava a felicidade.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 23/09/14.


 

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