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Eles e abismos

Batista de Lima


É preciso muita pele para segurar tantos abismos que transportamos. É preciso muito coro grosso para segurar os vulcões que latejam nas profundas que nos bicam. São bicadas de dentro para fora. Às vezes são anjos querubins, outras são demônios satanases. Todos querem aflorar na nossa superfície com ternuras ou valentias. Por isso procuramos peles proteções. Tudo que fazemos é construção de peles, é soerguendo uma pletora dique, uma crosta escudo, um casco muro. Daí que a epiderme sozinha pouco faz. Essa primeira pele já vem na gente como o pecado original. Dela ninguém se livra. E a vida toda é um calafetar de seus arrombos. O corpo é vocacionado para escombro. É todo tempo querendo virar terra e nós querendo torná-lo céu.

Um dia inventaram a segunda pele como proteção do frio, como refúgio do calor. Essa pele cobriu as partes, que depois viraram vergonhas, pois ninguém quis mais mostrá-las. Esqueceram que era mais uma capa de proteger funduras. Quando fundaram a terceira pele, com seus tetos e quartos, era mais proteção do corpo, eram menos cuidados d'alma. Assim foram se inventando outras e outras peles, mais proteção por fora, menos preocupação por dentro. Até parece que quanto mais o homem cria peles, menos cuida dos abismos. Depois do teto, ele inventou a palavra, depois veio o transporte com a ilusão de vencer o tempo, com a ganância para comer distâncias. Vieram a memória e o sonho, o medo e a coragem, o presente e o passado.

O desconhecido se aloja nos abismos. Esconde-se tanto que nem seu hospedeiro consegue tomar terra nos pés. Não nos conhecemos o bastante para sabermos até onde podemos mergulhar, nem temos fôlego suficiente para esse mergulho. Até a psicanálise, ao vasculhar nossos desvãos, não tem conseguido percorrer todos os atalhos, todos os desvios das rotas de nosso traçado mental. Por isso que palavras são panos poucos para cobrir tantos abismos. Mesmo os caminhos da memória não desvelam todos os mistérios do acontecido e do que poderia ter acontecido. E é essa mesma memória que nos leva a concluir que todos os objetos da cultura possuem suas peles e seus abismos.

Um desses objetos é a casa de moradia, nossa terceira pele. A casa tem seus abismos também. Nela entram os labirintos do devaneio, a geometria do repouso e a possibilidade dos mais variados sonhos. Como um corpo humano, ela acomoda pele e abismo. Tão humana é a casa que é até possível através dela se elaborar uma topoanálise, ou seja, analisar seu morador através das relações com seu espaço de viver. É daí que se deduz serem nossos sonhos muitas vezes cerceados, dado o enquadramento com que os cercamos. A nossa casa, nossos aposentos e utensílios são estruturas retangulares, quadrados, retilíneos e não redondos como nossos sonhos.

As peles que nos cercam são também sintomas de nossos abismos. A pele do planeta, apresentando seus cânceres, são sintomas dos abismos desumanos. As águas envenenadas também são peles morrentes. Esse olhar, no entanto, que vagueia superfícies, não mergulha nas estruturas profundas que, afetadas, não são vistas mas que transcendem subterrâneas e afloram aos olhos de quem apenas avista mas não vê. Quando a temperatura aumenta de ano para ano e nos tosta a pele, são os signos superficiais que são mostrados como responsáveis. Dessa visão para um mergulho nas razões subjetivas há uma grande distância.

Foi para encurtar distâncias e dirimir espantos que se inventou a palavra. Ela trouxe uma nova pele para cada coisa, entretanto, não se livrou de trazer consigo os abismos dessas coisas. A palavra é o milagre que encantou o homem. Esse milagre recrudesceu na sua natureza quando ele notou que ela não era apenas superfície, mas assim como ele próprio, vinha carregada de profundezas. A palavra é uma vestimenta das coisas que nos rodeiam. Ela pode transportar o suor de cada coisa, seus odores, seus clamores. Por isso que ela também tem pele e abismo, superfície e profundidade, significante e significado, metonímia e metáfora.

A luta que se trava entre peles e abismos resulta nos dramas pessoais. Somos patrulhados para dominar os anjos e os demônios que carregamos. Nosso duplo tem que estar acorrentado no mais secreto do nosso ser. É como se nossa superfície fosse do outro e não nossa. Não temos direito de sermos o que somos. Temos que ser o que os outros são. Pela minha pele tem que jorrar alegria e felicidade mesmo que meus abismos estejam prestes a explodir. Medíocre a ideia de que o choro é meu, o riso é do outro. Não posso cultivar minha tristeza, pois perdi o direito de ser triste. É daí que surgem as grandes batalhas entre peles e abismos.

O tropel das ilusões perdidas tem que se camuflar como navio fantasma na ponta escura de um cais. Depois mostrar um oceano de respostas perguntáveis, pescando com os olhos um mar amordaçando o corpo. Mas esse olhar não consegue negar que o captado e ingerido pela pele retorna carimbado por entranhas. Essa porta semiaberta é o suspiro por onde os outros carregados se oxigenam de exteriores. Entre a pele e o abismo está ali esse sentinela com uma banda avistando capoeiras e outra banda regando sonhos e quimeras. Que seria da vida se não fosse essa permanente batalha de um eu que me fizeram contra outro que eu construí? Que seria de mim se meus abismos não vivessem recriminando o tributável de minhas peles?


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 27/05/14.


 

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