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Duas lendas romenas

Batista de Lima


A natureza esgarçou-se no percurso que o homem fez entre a aldeia e a cidade. A aldeia é domesticada pela fauna e pela flora. A cidade destrói a ambas. A imagem do aldeão é associada ao pastoreio, ao pequeno agricultor familiar, produzindo apenas o que consome. A cidade é capitalista, intermediária entre o produtor e o consumidor. Por isso que é atraente a fenomenologia da aldeia que mantemos na memória. Na aldeia estão os ninhos, na cidade estão as naves.

Na aldeia os animais domésticos estabelecem afetos com os moradores. Uma ovelha, nesse espaço pastoril, transborda de maternidade. A ovelhinha nova, a marrã, como é chamada, cativa as pessoas. Por isso, histórias de cordeiros são singelas. É o caso de “Mioritza” a cordeirinha romena, imortalizada numa balada popular. Ela nos chega com tradução de Luciano Maia e com apresentação de Ático Vilas-Boas da Mota. Essa lenda em versos traz o tema do pastoreio e proporciona ao leitor interpretações filosóficas sobre a vida e a morte.

A ovelhinha avisa ao pastor do perigo da morte que o rodeia, perpetrada por dois inimigos que se aproximam. O pastor aceita a morte, transformando-a numa celebração. Tudo começa com a conversa entre o pastor e a ovelhinha. É então que toda uma intimidade é demonstrada entre homem e natureza. Isso ocorre de uma forma tão natural que a morte se torna uma boda, um ritual de passagem, executado com aceitação. É uma lenda da Romênia, escrita em versos, mostrando a diferença entre aldeia e cidade. Na aldeia, predominando a narrativa, os mitos que crescem passando de boca em boca. Na cidade vigorando a informação para prejuízo das narrativas.

“Caprioara” é a corça, ferida pelos cães caçadores, e que foge dos que lhe perseguem, mas não resiste aos ferimentos. A ternura da selvagem, nesse conto de Michael Sadoveanu, humaniza a cena a tal ponto que não é a morte que impressiona, mas o desenrolar do enredo que a antecede. O mundo aldeão contém essa vivência com o natural de tal forma que a transfiguração do animal não o diferencia da personalidade humana. Para isso é fundamental que o narrador mostre a alma da aldeia, trazendo da ancestralidade o exemplo de integração entre o homem e a natureza.

Luciano Maia, o tradutor, é cearense, nascido em Limoeiro do Norte, hoje radicado em Fortaleza. Já possuidor de duas dezenas de obras publicadas, merecidamente ocupa uma cadeira da Academia Cearense de Letras. Estudioso das línguas românicas, Luciano mergulhou com mais fôlego na cultura romena, tornando-se cônsul honorário, em Fortaleza, daquele povo europeu. Assim, tem traduzido várias obras do romeno para o português, além de divulgar entre nós, a cultura daquele país. Na tradução que elabora das poesias romenas, seu trabalho se mostra uma recriação daquele universo poético.

Quando traduz as lendas, que, geralmente possuem origem bem mais antiga, Luciano não perde o ritmo no traslado para nossa língua portuguesa. As duas línguas são irmãs, mas com distâncias no seu léxico que precisam ser superadas na tradução. Daí que o tradutor precisa recriar para manter a literariedade original. A Romênia mantém muitas das suas tradições. Suas canções ancestrais, de origem pastoril, são um desafio para quem deseja traduzi-las para outras línguas. Afinal, o universo mítico e “miorítico”, nas palavras de LucianBlaga, traz para os dias de hoje uma ancestralidade milenar. Foi desse contexto que Luciano Maia captou as duas lendas e conseguiu traduzi-las.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 27/08/19.


 

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